Historicamente, a cooperação teve sua presença consolidada no cenário internacional no pós-Segunda Guerra Mundial através da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e, de forma mais concreta, devido à devastação socioeconômica causada pela guerra e à consequente necessidade de recuperação.

O artigo primeiro da Carta da ONU (1945) estabelece como um dos objetivos da organização  “realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de carácter económico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Desde então a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento – apesar das controvérsias de cunho mais conceitual – tornou-se central para as Relações Internacionais, tanto no que diz respeito à pesquisa acadêmica quanto aos fóruns de tomada de decisão, para além do sistema das Nações Unidas, como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

No que tange ao Brasil, Amado Cervo (1994) advoga que a cooperação internacional foi anexada à política exterior do país como variável permanente, passando a mobilizar grande número de entidades internas e externas ocupadas com a difusão ou a utilização de técnicas. Nesta direção, de acordo com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), “o Governo brasileiro tem como pressuposto fundamental que a cooperação técnica recebida deve contribuir significativamente para o desenvolvimento socioeconômico do País e para a construção da autonomia nacional nos temas abrangidos”.

Apesar do inegável encolhimento da politica externa – considerada “altiva e ativa” quando conduzida pelo ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva (2002-2010) e pelo chanceler Celso Amorim -, foi no governo de Dilma Rousseff, em agosto de 2013, que se assinou o “acordo de cooperação técnica para ampliar o acesso da população brasileira à atenção básica em saúde”.  Mais conhecido como “Mais Médicos”, o acordo –  resultado de uma parceria entre a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e os Ministérios da Saúde do Brasil e de Cuba – integra um conjunto de ações para combater as desigualdades de acesso à atenção básica, com o foco na escassez de profissionais de saúde especialmente em áreas remotas e vulneráveis.

Primeiramente é importante destacar que, apesar do crescente protagonismo brasileiro na área da saúde através “dos programas de cooperação em desenvolvimento, refletindo os avanços obtidos pelas políticas públicas nacionais em saúde” (Buss, 2108, p.1885), grandes disparidades de saúde ainda persistem no país. Neste sentido, o relatório Good Practices in South-South and Triangular Cooperation for Sustainable Development (2016) apresentado pelo Escritório das Nações Unidas para Cooperação Sul-Sul (UNOSSC) aponta que uma parcela considerável da população brasileira não possui acesso a instalações de saúde adequadas, nem a profissionais médicos. A realidade das regiões mais desfavorecidas e remotas do país, incluindo os 34 distritos sanitários indígenas, incluía cinco Estados com menos de um médico por 1.000 pessoas e 700 municípios sem médico.

Neste sentido, Oliveira et al (2015) elucidam que o Mais Médicos foi estruturado em três eixos de ação: 1) investimento na melhoria da infraestrutura da rede de saúde, particularmente nas unidades básicas de saúde; 2)  ampliação e reformas educacionais dos cursos de graduação em medicina e residência médica no país; 3) provisão emergencial de médicos em áreas vulneráveis.

De acordo com o Ministério da Saúde, a preferência para a chamada de profissionais para atuar no Mais Médicos “sempre foi e será daqueles que têm registro de atuação médica no Brasil”. Quando são abertos os editais de chamamento individual, a ordem de preferência é: médicos com registro no Brasil; médicos brasileiros formados no exterior;  médicos estrangeiros formados no exterior. Caso ainda sobrem vagas, os médicos cubanos são convocados por meio do acordo de cooperação internacional entre o Brasil e a OPAS. Destaca-se que, em 2013, início do programa, os médicos cubanos foram alocados em 700 municípios, dos quais “604 (86%) são municípios com 20% ou mais de sua população em situação de extrema pobreza e 591 (84%) são do Norte e Nordeste”(OPAS, 2013). Mesmo assim, a presença dos médicos cubanos no Brasil desencadeou diversas polêmicas.

Antes de fazer uma análise das controvérsias – reais ou hipotéticas – do programa, é essencial irmos minimamente a fundo para entender o porquê deste acordo de cooperação em Saúde ter sido assinado com Cuba.

No artigo Cuba’s International Cooperation in Health: An Overview (2007), De Vos et al apontam que apesar das dificuldades econômicas durante a década de 1990, que levaram a reformas econômicas significativas, o sistema nacional de saúde de Cuba ganhou reconhecimento mundial por seu desempenho e resultados: Cuba alcançou indicadores de saúde que estão entre os melhores do mundo. Os autores ressaltam, ainda, a histórica assistência internacional cubana na área da saúde, que teve início logo após a revolução de 1959 e que, em 2007,  atuava em 69 países.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) disponibiliza a relação médico-população dos países e aponta que mais de 45% dos Estados Membros tem menos de 1 médico por 1000 habitantes. A proporção no Brasil é de 1,85 médicos para 1000 habitantes, semelhante à China, cuja proporção é de 1,81. Já no Afeganistão, há 0,295 médico para 1000 habitantes e na República Democrática do Congo, a proporção é ainda menor: 0.091. Por outro lado, a França possui 3,23 médicos para 1000 habitantes, a Alemanha, 4,19 e a Noruega, dona do maior IDH do mundo, possui 4,385 médicos para 1000 habitantes. Neste panorama, destaca-se que Cuba tem uma proporção de 7,519 médicos para cada 1000 habitantes, a maior proporção do mundo, de acordo com a OMS. O sistema de saúde cubano é descrito como altamente estruturado, orientado para a prevenção, rico em informação, inovador e eficiente (Campion e Morrissey 2013; Lamrani 2014; Fuente 2017; Hamlin, 2016).

A crise do Ebola (2014-15) ilustra a cooperação e a solidariedade de Cuba na área da saúde. Em dezembro de 2013, aconteceu o primeiro caso de Ebola na Guiné. Em janeiro de 2014, a OMS emitiu o primeiro alerta sobre um surto do vírus, considerando que, em um pouco mais de um mês, havia 6.574 casos com a morte de 3.091 pessoas. Em setembro de 2014, a ONU em conjunto com a OMS solicitaram colaboração médica internacional para auxiliar a crise médica e o desastre social pelo na África Ocidental. Chaple e Mercer (2016) destacam que as autoridades cubanas responderam imediatamente ao chamado: um grupo de 256 médicos cubanos, enfermeiros e outros profissionais de saúde prestaram cuidados diretos durante a epidemia de Ebola em Serra Leoa, Libéria e Guiné Equatorial, de outubro de 2014 a abril de 2015.

Diante do contexto apresentado, o acordo de cooperação em saúde entre Brasil e Cuba torna-se justificável. Assim, o próximo passo é analisar porquê o programa, desde o início, sofreu diversas retaliações não somente de representantes da medicina brasileira, mas também de parte da população. O foco será: o salário recebido pelos médicos cubanos e o processo de revalidação do diploma, que não se aplica aos médicos do programa.

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Pelos termos do acordo de cooperação, o salários dos médicos era pago pelo governo brasileiro para Organização Pan-Americana de Saúde que, posteriormente, repassava o valor para o governo cubano que pagava os médicos. Ademais, a responsabilidade pela moradia e pela alimentação era de responsabilidade das prefeituras, que assinaram convênios com o Ministério da Saúde. O governo brasileiro, portanto, não estabelece contratos individuais com os médicos cubanos, que são funcionários do Ministério da Saúde Pública de Cuba. Em 2017, de acordo com diversos jornais nacionais, havia 154 ações movidas na Justiça brasileira por 194 médicos cubanos para permanecer no país e receber o valor integral do salário. Não obstante o fato de que todas as denúncias devam ser investigadas, deve-se ponderar que cerca de 14 mil cubanos atuaram no Programa e que as queixas correspondem a menos de 2% dos participantes.

No que tange à validação do diploma, os médicos do programa têm uma avaliação distinta que envolve o o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação. De acordo com o Edital n° 50, Adesão dos médicos ao Projeto Mais Médicos para o Brasil, publicado no Diário Oficial da União, em 16 de agosto de 2013, os médicos estrangeiros só começam a trabalhar no Brasil após um curso de especialização em Saúde da Família, com foco em língua portuguesa, protocolos assistenciais nacionais e o Sistema Único de Saúde (SUS).  Os médicos que são aprovados no teste de admissão, após quatro semanas de aula, recebem um registro provisório para exercício da medicina com validade apenas para atuação dentro do Programa Mais Médicos. Ademais, são supervisionados e orientados por instituições de ensino .

Controvérsias à parte – muitas vezes inflamadas por perspectivas político-ideológicas –, os resultados do Programa são inegáveis. De acordo com a OPAS,  no primeiro ano do Mais Médicos (2013-2014) a cobertura de atenção básica de saúde aumentou de 10,8% para 24,6%. O relatório da UNOSSC aponta, ainda, que, devido ao Mais Médicos, o aumento significativo na disponibilidade de médicos no primeiro nível de atendimento impactou aproximadamente 63 milhões de pessoas em 4.058 municípios, contribuindo “para uma menor taxa de mortalidade infantil e diminuição das hospitalizações como resultado da disponibilidade de atenção primária à saúde”. A maioria dos médicos trabalhando em municípios com 20% ou mais da população vivendo em extrema pobreza é integrada por cubanos. Similarmente, nos distritos indígenas, em dois anos, houve um crescimento de 79% na disponibilidade de médicos – desde agosto de 2013, antes do início do programa. De acordo com Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde do Brasil (SESAI), 90% dos médicos que atendem nessas áreas são cubanos.

No dia 14 de Novembro de 2018, o Ministério da Saúde de Cuba declarou a retirada do país do acordo de cooperação com a justificativa de que “o presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, fazendo referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos, declarou e reiterou que modificará termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito à Organização Pan-americana da Saúde e ao conveniado por ela com Cuba, ao pôr em dúvida a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa a revalidação do título e como única via a contratação individual. As mudanças anunciadas impõem condições inaceitáveis que não cumprem com as garantias acordadas desde o início do Programa, as quais foram ratificadas no ano 2016 com a renegociação do Termo de Cooperação entre a Organização Pan-americana da Saúde e o Ministério da Saúde da República de Cuba”.

Com a saída de Cuba do Programa Mais Médicos, que atualmente conta com mais de 8 mil médicos cubano em cerca de 3 mil municípios, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima que aproximadamente 28 milhões de brasileiros serão afetados, podendo ser considerado uma “calamidade na saúde pública”. Contudo, tudo indica que a economia da ilha também ficará prejudicada. De acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC), o envio de profissionais de saúde para o exterior responde por 11 dos 14 bilhões de dólares arrecadados por ano com exportações de bens e serviços.

A decisão de Cuba – embora unilateral e com prejuizos, distintos, mas para ambos os lados – reflete a falta de prudência das falas do novo presidente: sem nem sequer ter tomado posse, tem causado mal-estar e mal-entendidos em diversas áreas. Para os pesquisadores da área, e para a sociedade brasileira como um todo, resta aguardar o desenrolar do esforço do governo para recrutar médicos dispostos a ocupar os postos deixados pelos cubanos.

No Brasil, onde  a medicina é uma carreira de prestígio e de altos salários nas grandes capitais, o desafio não será apenas o de preencher as vagas nas regiões mais vulneráveis e remotas do país, mas também manter a qualidade do atendimento, aprovado por 94% dos pacientes, de acordo com pesquisa realizada, em 2015, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe). A continuidade na ampliação do acesso e na melhoria da qualidade da atenção básica dependem de ações sérias e responsáveis para garantir não somente a universalidade, mas, também, a integralidade e sustentabilidade do Sistema Único de Saúde.


Referências Bibliográficas

Campion EW, Morrissey S. 2013. A different model – medical care in Cuba. N Engl J Med. 368: 297-9.

Cervo A. 1994. Socializando o desenvolvimento: uma história da cooperação técnica internacional do Brasil. Brasília, Revista Brasileira de Política Internacional, v.37, n.1, p.37-63.

Chaple, E. B., & Mercer, M. A. (2017). The Cuban Response to the Ebola Epidemic in West Africa: Lessons in Solidarity. International Journal of Health Services47(1), 134–149.

De Vos, P; De Ceukelaire W; Bonet M e Van der Stuyft P. 2007. Cuba’s International Cooperation in Health: An Overview. International journal of health services: planning, administration, evaluation. 37. 761-76.

Fuente A.  How does Cuba manage to achieve first-world health statistics? El País, 10 February 2017.  https://elpais.com/elpais/2017/02/10/inenglish/1486729823_171276.html

Hamlin J.  How Cubans live as long as Americans at a tenth of the cost. The Atlantic, 29 November 2016. https://www.theatlantic.com/health/archive/2016/11/cuba-health/508859.

Lamrani S. Cuba’s health care system: a model for the world. Huffpost 8 October 2014. https://www.huffingtonpost.com/salim-lamrani/cubas-health-care-system-_b_5649968.html

Oliveira FP, Vanni T, Pinto HA, Santos JTR, Figueiredo AM, Araújo SQ, Matos MFM, Cyrino EG. 2015 Mais Médicos: a Brazilian program in an international perspective. Interface (Botucatu):623-34.

Santos LM, Oliveira A, Trindade JS, et al. Implementation research: towards universal health coverage with more doctors in Brazil. Bull World Health Organ. 2017;95(2):103-112.

World Health Organization. Global Health Observatory (GHO) data: Density of physicians. Disponível em: http://www.who.int/gho/health_workforce/physicians_density/en/