Corte nos subsídios geraram o caos no Equador, situação somente controlada após o recuo do governo. No Peru, uma crise política levou Vizcarra (que já havia assumido a presidência após outra crise, que culminou na renúncia de Kuczunski) a fechar o parlamento dominado pela oposição. O Chile, considerado modelo de capitalismo, sofre com mais uma revolta popular – pelo menos outras quatro já ocorreram neste século, em geral com demandas por melhoria e gratuidade dos serviços públicos – que exige a renúncia de Piñera. Na Bolívia, manobras de Evo Morales para viabilizar mais uma reeleição levaram forças reacionárias, com apoio militar, a forçarem a renúncia do presidente, em meio a violência política contra filiados ao Movimiento al Socialismo (MAS), partido de Evo, e ao caos generalizado[1].

Para observadores que começaram a acompanhar recentemente a política na América Latina, a impressão é de que o ano de 2019 ficará marcado.

De fato, vivemos um período de alta instabilidade social e forte polarização política na região, mas não é novidade. Este período pode ser considerado parte de um processo de transição global, marcado pela hegemonia da superpotência do pós-Guerra Fria, os Estados Unidos,pela  ascensão da China, pelo  recente avanço de líderes populistas, nacionalistas e radicais combinado ao aumento da concentração de renda aliado ao baixo crescimento econômico. Todos estes fenômenos podem ser observados por aqui: a China já é a segunda parceira comercial da América Latina, e primeira de Uruguai, Brasil, Chile, entre outros, e tem uma parceria estratégica com a Venezuela e conseguiu avançar consideravelmente até na Argentina de Macri; esta década também foi marcada pela ascensão de líderes populistas e aumento da concentração da renda.

No entanto, não é novidade que o que acontece no mundo, acontece de forma mais extrema na América Latina. Entre 1789 e 1957, 260 dos 371 golpes de Estado e 117 das 226 guerras civis aconteceram no subcontinente[2]. Vários episódios de disputas da Guerra Fria ocorreram aqui: Cuba, Nicarágua, Granada, Guatemala etc. Os países da região foram severamente afetados pelas ondas de golpes militares e ondas de democratização que varreram o mundo no século XX. O impacto das flutuações econômicas globais sobre a instabilidade política da região, principalmente da América do Sul[3], pode estar relacionada a grande dependência dos países da região à variação dos preços das commodities e taxas internacionais de juros[4].

A novidade neste cenário instável, é que o padrão de golpes de Estado vem sendo substituído pela interrupção de mandatos presidenciais. Entre 1930 e 1980, das 277 mudanças de governo ocorridas em países da América Latina e Caribe, 104 ocorreram por golpe de Estado. Nos anos 1980, somente 7 das 37 das transições aconteceram por meio de golpes e apenas duas, entre 1990 e 2008[5]. O caráter positivo do período atual só não é melhor porque os golpes foram – em grande parte – substituídos pelas interrupções de mandatos presidenciais. Entre 1978 e 2016, oito presidente eleitos sofreram impeachments (ou deixaram o cargo na iminência de sofre um), outros seis presidentes renunciaram durante crises, cinco presidentes interinos não completaram seus mandatos; apenas três deixaram o cargo resultado de intervenções militares[6]. Ainda que alguns destes impeachments tenham sido questionados e chamados de ‘golpes parlamentares’ ou ‘golpes blandos’ , não há como negar que não geraram o retorno de regimes autoritários. Sua recorrência pode ser relacionada a existência de mandatos fixos nos sistemas presidencialistas, que pode levar elites parlamentarias a buscarem este tipo de saída para crises políticas.

De acordo com a literatura especializada, a sociedade civil teria substituído as forças armadas como moderadores do poder político, o que pode ser considerado um fator positivo e de amadurecimento da cultura democrática na região. Entre 1978 e 2003, de 40 presidentes, 16 tiveram seus mandatos desafiados por amplos protestos populares, os quais levaram a queda de 9 desses[7]. Além da ocorrência de escândalos políticos (como denúncias de corrupção) e da ausência de apoio legislativo, a mobilização popular é um importante fator para a queda de presidentes[8]. Assim, apesar de alguns considerarem tais interrupções de mandatos como possíveis ameaças à democracia, estes fenômenos não geraram regimes autoritários, podendo ser considerados como episódios de sobrevivência democrática (apesar das crises) e de fortalecimento da sociedade civil.

Todavia, estas análises empíricas ainda não capturaram uma tendência observada mais recentemente e que acende um sinal de alerta para região: a retomada do ativismo político dos militares.  No Brasil, cabe mencionar a eleição de Jair Bolsonaro e diversos outros militares reformados para cargos legislativos e executivos. No Uruguai, o crescimento do Cabildo Abierto, sob a liderança de Guido Manini – ex-comandante do Exército nacional-, que alcançou 11% dos votos (quase ultrapassando o tradicional Partido Colorado) pode ser considerado algo bastante expressivo num dos sistemas de partidos mais institucionalizados do mundo. Acende o sinal vermelho, no entanto, a ascensão da repressão policial pelo regime de Maduro na Venezuela no início deste ano (além da importância do componente militar na sustentação de seu regime); a retórica de guerra e forte repressão militar no Chile de Piñera; e a decisiva participação dos militares na derrubada de Evo Morales.

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Ainda, outros dois fatores têm gerado instabilidade na região. Primeiro, a crescente presença da religião no discurso político, o que reforça o caráter messiânico e fortemente personalista na política latino americana. Por um lado, com viés ultraconservador, a ascensão política das igrejas evangélicas no Brasil, detentora de expressiva bancada legislativa e importante pilar na eleição de Bolsonaro, e as declarações da autoproclamada presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, mostram como a radicalização política pode ser justificada em bases divinas. Por outro, a aproximação de setores do Partido Justicialista com a igreja católica na Argentina pode retomar esta importante raiz do peronismo, regime com forte caráter personalista e populista.

Segundo, o aumento do intervencionismo na região. Resultado de uma reinvestida estadunidense para contrabalancear o avanço chinês (apoiado por um Brasil alinhado ideologicamente), episódios recentes – que vão desde ameaças de intervenção na Venezuela às declarações públicas de líderes políticos sobre resultados eleitorais em outros países – marcam outro retrocesso para a região, que até o início da década de 2010 havia alcançado um alto nível de concertação política por meio de arranjos sub-regionais como aUnasul e e o Mercosule que excluíam a influência dos Estados Unidos e da OEA.

O crescimento do ativismo político da sociedade civil é uma importante demonstração do amadurecimento da cultura política na região. No entanto, para atravessarmos este período de transição, o papel das elites políticas é essencial superar problemas estruturais e retomar a estabilidade política na América Latina: 1) são necessárias políticas públicas para diminuir a concentração de renda e terra; o avanço econômico ocorrido durante a ‘onda rosa’ não resultou apenas da alta dos preços das commodities, mas também do avanço do consumo no mercado interno; os altos índices de desigualdade e a concentração da riqueza dificultam a construção de sociedades pacificadas e com melhores índices de desenvolvimento humano; 2) o radicalismo na retórica política e falta de preferência normativa pela democracia por parte das elites políticas são fatores que elevam o risco de retrocesso autoritário na região e desestabilizam as democracias na América Latina[9]; 3) o fortalecimento dos sistemas de partidos e a estruturação de partidos programáticos e coesos ideologicamente é outro fator essencial tanto para evitar a ascensão de lideranças personalistas, quanto para enriquecer o debate sobre políticas públicas que possam garantir crescimento econômico e justiça social; 4) por fim, é necessário buscar soluções mediadas por atores neutros, reforçando os princípios de autodeterminação e de autonomia na política regional; a polarização política na região e os Estados Unidos sob Trump têm elevado o tom da disputa contra governos adversários e frente à ‘invasão chinesa’, de modo que os governos da região devem tanto diminuir o incentivo ao intervencionismo americano, quanto aumentar o grau de concertação política através da mediação das crises com apoio de organizações internacionais de âmbito global, potencialmente mais neutras.


[1]     Ainda é difícil afirmar se houve fraude eleitoral por atores ligadas a Evo Morales para o manter no poder, o que poderia ser considerado como um ‘auto-golpe’ (quando um presidente desrespeita a constituição para se manter no poder).

[2]  Adam Przeworksi, “Latin American Political Regimes in Comparative Perspective,” in Routledge Handbook of Latin American Politics, ed. Peter R. Kingstone and Deborah J. Yashar (New York London: Routledge, 2016), 542–63.

[3]  Kathryn Hochstetler and Margaret E. Edwards, “Failed Presidencies: Identifying and Explaining a South American Anomaly,” Journal of Politics in Latin America 1, no. 2 (August 2009): 31–57, https://doi.org/10.1177/1866802X0900100202.

[4]  Daniela Campello and Cesar Zucco, “Presidential Success and the World Economy,” The Journal of Politics 78, no. 2 (April 2016): 589–602, https://doi.org/10.1086/684749.

[5]   Arturo Valenzuela, “Presidencias Latinoamericanas Interrumpidas,” América Latina Hoy 49 (2008): 15–30.

[6] Aníbal Pérez-Liñán and John Polga-Hecimovich, “Explaining Military Coups and Impeachments in Latin America,” Democratization 24, no. 5 (2016): 839–58, https://doi.org/10.1080/13510347.2016.1251905.

[7]    Kathryn Hochstetler, “Repensando El Presidencialismo: Desafíos y Caídas Presidenciales En El Cono Sur,” América Latina Hoy 49 (2008): 51–72.

[8]    Aníbal S. Pérez Liñan, Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America, Cambridge Studies in Comparative Politics (New York, NY: Cambridge University Press, 2007).

[9]     Mainwaring e Pérez-Líñan (2013) já apresentaram evidências que são fatores determinantes a sobrevivência dos regimes democráticos. Cf. Scott Mainwaring and Aníbal Pérez-Liñán, “Democratic Breakdown and Survival,” Journal of Democracy 24, no. 2 (2013): 123–37, https://doi.org/10.1353/jod.2013.0037.


Italo Beltrão Sposito

É Professor Adjunto no Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Porto Nacional e, atualmente, Professor Visitante na Universidad de la Republica, Uruguai. É mestre e doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).

Autor do livro Redirecionamento da Política Externa: uma análise comparativa entre os Governos Castello Branco e Fernando Collor” (2013), desenvolve pesquisa em Análise de Política Externa e Política Comparada, tendo publicado artigos nos periódicos: DADOS – Revista de Ciências Sociais, Revista de Ciencia Política (Santiago), Brazilian Political Science Review, Mural Internacional, Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política e Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política.