A destruição da floresta amazônica, e do pluriverso nela inserido, vem sendo ocasionada pela atuação ilegal de atores com interesses econômicos e na posse de terras na região, que agem às margens do regulamento legislativo brasileiro para alcançar seus objetivos. Esses atores, também conhecidos como grileiros, avançam sobre propriedades públicas com o intuito de apropriá-las, expulsando pessoas e grupos sociais que podem estar vivendo naquele lugar.

Desde 2019, ano em que Jair Bolsonaro tomou posse oficialmente, são constantes as notificações dos índices crescentes de desmatamento e de queimadas no país, resultado da ação predatória de grileiros que se utilizam destes dois elementos como estratégia para a ocupação de terras públicas ilegalmente. Nessas circunstâncias, a Amazônia brasileira já perdeu cerca de 12 mil km² de floresta nativa.

Pandemia ofusca abusos e agrava crise ambiental

Em contexto pandêmico, as prospecções são ainda mais graves. Em publicação na Plataforma Terrabrasilis e com base no sistema Deter-B, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), apresentou a sinalização de mais de dois mil alertas de queimadas entre janeiro e abril de 2020, correspondendo a uma área de 405,6 km², 63,75% maior do que o registrado no mesmo período no ano passado, quando se emitiram alertas para 247,7 km² de floresta. HojeDois eventos podem ser entendidos como demonstrações de negligência da atuação federal diante da problemática ambiental.

Primeiro, trata-se do conteúdo proferido durante a reunião ministerial de 22 de abril. O ministro à frente da pasta de meio ambiente, Ricardo Salles, sugeria na ocasião que o governo federal mudasse as regulamentações de proteção ambiental e de atividades agrícolas sem passar pelo Congresso, assim como é previsto na Constituição. Seu argumento sustentava que o momento cristalizado pela pandemia da COVID-19 seria favorável ao avanço na desburocratização da concessão de títulos aos agricultores e pecuaristas —  “passar a boiada”, em suas palavras —, pois  os veículos de informação estariam preocupados em monitorar a questão sanitária do país, e pouca atenção seria dada a essas mudanças.

O segundo fator diz respeito à Medida Provisória 910 e o seu sucessor, o Projeto de Lei 2633, que premia os grileiros e incentiva a destruição de novas áreas florestais. Ainda que existam critérios para o andamento do processo, a proposta foi criada na busca por conceder títulos de propriedade àqueles que ocuparam as terras públicas de até 2.500 hectares irregularmente sem a necessidade de vistoria, tendo 2008 como marco temporal.

Tais fatores e seus efeitos deletérios fazem parte da retórica reforçada corriqueiramente pelo discurso antiambiental do chefe do Poder Executivo e seu ministro do Meio Ambiente, que incutem a possibilidade de violação das leis ambientais sem punição e com fiscalização reduzida, contrariando o que é prescrito em lei federal. Não apenas isso: o desmonte e a desarticulação de instituições importantes para a governança ambiental, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), por meio da troca constante de suas respectivas secretarias executivas e da redução de seu corpo de fiscais, são demonstrações práticas do retrocesso institucional.

Entre o avanço dos grileiros e da Covid-19 na Amazônia: desprestígio e perda de legitimidade internacional do Brasil

Não bastasse o avanço do desmatamento amazônico em território brasileiro por meio dessas políticas de governo, outro problema veio à tona: a Covid-19 alcança as aldeias indígenas em decorrência do contato com garimpeiros e madeireiros, que incentivados a explorar regiões isoladas e de habitação desses povos devido a menor fiscalização, se tornam os potenciais transmissores do vírus. Esse contato amplifica a tensão no cenário ambiental e aprofunda a fragilidade da saúde pública no contexto atual.

Condições específicas fragilizam os povos originários brasileiros. A dificuldade de acesso aos serviços de saúde, seja pela distância de onde estão localizadas as aldeias ou pela ausência de atendimento especializado, potencializa a disseminação da doença entre eles.

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Diante desse cenário de desorganização generalizada, mas que afeta mais gravemente a saúde e o meio ambiente, a oposição política do governo em vigor, associada às organizações e movimentos ambientais[1], tem atuado na Justiça Federal e no Supremo Tribunal Federal contra a má governança dos recursos voltados para o combate ao desmatamento e sua manutenção. Foram registradas por esse grupo três ações diretas de inconstitucionalidade contra o governo federal por congelamento das verbas destinadas à preservação ambiental e exportação de madeira sem fiscalização.

O sucateamento da agenda ambiental e a ausência de garantias ao bem viver das comunidades originárias gravemente afetadas pela crise sanitária descertificam as credenciais internacionais brasileiras, que prestigiavam o país como grande agente de combate às mudanças do clima aos olhos da comunidade internacional. Isto prejudicaria uma série de acordos em fase de negociação e compromissos anteriormente estabelecidos em âmbito multilateral, além de diminuir e/ou interromper o fluxo de entrada de investimentos nas empresas instaladas no país.

Um exemplo disto é o Acordo Mercosul-União Europeia, que tem recebido propostas de suspensão de alguns dos líderes europeus e também de organizações da sociedade civil e institutos de pesquisa. Na medida em que os dados mostram uma tendência contrária às metas submetidas pelo Brasil ao Acordo de Paris sobre a redução de emissões e dos níveis de desmatamento, surgem núcleos de resistência à conclusão do acordo entre os dois mecanismos regionais.

As partes contrárias alegam que a Comissão Europeia levou as negociações à cabo sem ter em conta dados mais recentes sobre o avanço do desmatamento na Amazônia e as alterações nas políticas de governança florestal. Para além disso, não teria sido levado em conta também a constante violação dos direitos dos povos originários gravemente afetados pela atividade mineradora, que conteria em si o potencial de abrir 9,8 mil hectares de área florestal protegida até 2025.

Fato recente foi o envio de uma carta assinada por 38 executivos e políticos[2], brasileiros e estrangeiros, ao vice-presidente da República, Hamilton Mourão, solicitando  que o poder público tomasse medidas mais enfáticas no combate do desmatamento na floresta amazônica. O grupo se diz preocupado com a percepção negativa que o Brasil tem passado internacionalmente por conta de sua política e retórica anti-ambiental, uma vez que isto apresenta possíveis prejuízos ao desenvolvimento e o fomento aos negócios no país.

Mourão comanda o Conselho da Amazônia, que tem por responsabilidade propor projetos e programas para a diminuição do desmatamento na região. A demanda do grupo que enviou a carta-manifesto é que sejam fornecidos dados que apresentem os resultados dessas iniciativas. Ainda assim, não foi apresentada nenhuma proposta no âmbito do Conselho para além de compromissos discursivos quanto a melhoras dos índices ambientais.


[1]     Nesse conjunto de representações estão inseridos a Associação Brasileira dos Membros do Ministério do Meio Ambiente (Abrampa), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido dos Trabalhadores (PT), Rede Sustentabilidade, Greenpeace e Instituto Socioambiental (ISA).

[2]      A carta-manifesto é assinada por dirigentes das empresas Agropalma, Alcoa, Amaggi, Ambev, Bayer, Brasilagro, Cargill, Cosan, DSM, Ecolab, ERM, Grupo Vamos, Iguá, Jacto, JSL, Klabin, Marfrig, Mauá Capital, Michelin, Microsoft, Movida, Natura, Schneider Electric, Shell, Siemens, Sitawi, Stefanini, Suzano, Ticket Log, Vale, Vedacit e Wework, dos bancos Bradesco, Itaú, Rabobank e Santander, da estatal Eletrobras e das entidades Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e Indústria Brasileira de Árvores (Ibá).


* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”