Gustavo Menon
Mestre em Ciências Sociais (Política) pela PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais – NEILS/PUC/SP.
Em meio à crise do petróleo e ao desgaste dos governos aliados na região, a Bolívia completa, no dia 22/01, dez anos sob o governo Evo Morales. Reeleito, em 2015, para um novo mandato até 2020, Evo e seu partido, o Movimento para o Socialismo (MAS), trouxeram inúmeras mudanças significativas para o país. Em Tiwanaku , sítio arqueológico de uma civilização pré-incaica, próximo a La Paz, Evo reafirmou seu compromisso de seguir com sua agenda anti-imperialista e de desenvolvimento.
Com a aprovação de uma nova carta Magna, juntamente com uma política de nacionalização dos hidrocarbonetos, o atual governo boliviano rompeu com o modelo neoliberal das décadas anteriores. A vitória do MAS possibilitou uma maior participação das classes subalternas na política boliviana. Entre os maiores triunfos de Evo, vale destacar a radical queda da pobreza em seu país. Catalisando os recursos dos hidrocarbonetos, o governo investiu fortemente em programas sociais, sobretudo nas áreas de educação, saúde e moradia. Com o aumento da receita e dos gastos públicos, de acordo com o próprio FMI, a pobreza foi reduzida de 53% a 29%, e a pobreza extrema caiu de 38% a 17%, no período 2005-2014.
O governo boliviano também garantiu o crescimento de sua economia mesmo diante da forte recessão mundial de 2008. O PIB da Bolívia, entre 2006 a 2014, cresceu em uma média superior a 5%. Além disso, com a inflação controlada e o aumento dos empregos, foi possível criar um cenário de estabilidade econômica que aumentou o fluxo de investimentos no país, principalmente nas áreas de mineração e infraestrutura, ligadas ao capital chinês.
Contudo, quais são as projeções diante da desaceleração da economia chinesa, da atual crise do petróleo e da perda de força dos governos progressistas na América do Sul?
Propostas para economia boliviana, periférica e dependente: Neodesenvolvimentismo x bem-viver
Contando com uma proposta claramente antineoliberal, o programa de governo do MAS quer impulsionar a industrialização no país, criando um projeto que se auto-intitula “capitalismo andino-amazônico”. Para isso, o vice-presidente de Evo, o marxista Álvaro Garcia Linera, prevê a construção de um Estado Boliviano que seja capaz de regulamentar a economia e as indústrias, mas, ao mesmo tempo, consiga distribuir seus recursos para as classes subalternas. Linera destaca a importância de extrair os excedentes oriundos da economia boliviana e transferi-los para o âmbito comunitário, incentivando, sob esta lógica, os movimentos sociais e as formas de auto-organização.
Ligado ao movimento cocaleiro e sindical, Evo, desde sua primeira campanha presidencial, em 2002, enfatizava a importância dos movimentos sociais como protagonistas da democracia. A luta contra a privatização da água, entre janeiro e abril de 2000, em Cochabamba, pavimentou o caminho para a ascensão do líder indígena. Na eleição seguinte, em dezembro de 2005, Evo alcançou cerca de 54% dos votos válidos, tornando-se assim Presidente da República.
Em sua plataforma de governo, o MAS também continua apostando na nacionalização dos hidrocarbonetos, fator esse que, inclusive, gerou algumas tensões diplomáticas com o governo brasileiro. Com uma economia altamente dependente destes recursos naturais, Evo propôs rever todos os contratos das empresas multinacionais exploradoras de gás. Em seu discurso de posse, em 2006, afirmou: “os hidrocarbonetos pertencem ao Estado e a Bolívia deve aproveitar seus recursos, que serão à base do novo crescimento econômico do país”.
A nacionalização de setores estratégicos do Estado, como os hidrocarbonetos e a mineração, permitiu uma maior distribuição de renda na Bolívia. Contudo, o país ainda possui amplo contingente de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Neste sentido, as políticas sociais do governo Morales, financiadas com os recursos dos hidrocarbonetos, destinam-se, sobretudo, aos setores mais vulneráveis da população, como os idosos (Renda Dignidade), as crianças (bônus Juancinto Pinto) e as mulheres gestantes (bônus Juana Azurduy). O programa Desnutrição Zero, destinado às crianças menores de cinco anos de idade, por exemplo, busca atacar um dos problemas mais alarmantes da Bolívia: às condições precárias de alimentação, que são acentuadas pela extrema miséria – localizada, majoritariamente, em regiões desassistidas.
A política “neodesenvolvimentista” boliviana, ao mesmo tempo, abriu caminho para o crescimento vertiginoso no PIB. No ano de 2013, o crescimento da economia boliviana, baseada em aumentos salariais moderados e inflação controlada, chegou a uma taxa de crescimento de 6%, o segundo índice mais alto na América do Sul (perdendo apenas para o Paraguai). Isso explica, em grande medida, a constante queda do desemprego no país. Todavia, a política seguida pelo ministro da economia de Evo, Luis Arce Catacora, evita se confrontar com os interesses do capital financeiro. Os bancos, neste contexto, continuam obtendo bons resultados em seus balanços.
Contudo, ao mesmo tempo em que o governo Morales coloca no Estado um papel ativo para o desenvolvimento econômico, algumas de suas políticas parecem colidir com os ideais de “bem-viver” apontados na constituição boliviana, proclamada em novembro de 2007. Norteada com princípios de soberania dos recursos naturais, reconhecimento da plurinacionalidade e respeito à natureza (princípios esses defendidos, sobretudo, pelos movimentos indígenas durante a constituinte), o governo do MAS encontra-se numa verdadeira encruzilha: alavancar os projetos de desenvolvimento econômico ligados à infraestrutura e à exploração dos recursos naturais para extirpar os péssimos índices sociais ou garantir um modelo de desenvolvimento de baixo crescimento que respeite as comunidades indígenas e a harmonia com o meio ambiente.
Um exemplo desse antagonismo se fez presente na construção de uma rodovia que passaria por uma reserva florestal no país. A estrada, financiada por recursos brasileiros, cruzaria o Território Indígena Parque Nacional Isidoro Sécure (TIPNIS), onde se estima que morem 13 mil pessoas de diferentes nacionalidades. A relação capital-natureza ainda é um desafio a ser solucionado pelo MAS nos próximos anos. Somado a isso, a diversificação do polo industrial também se faz necessária uma vez que o setor de petróleo e gás corresponde à metade das exportações e aproximadamente a um terço das receitas do governo.
Relações diplomáticas e política externa do governo Morales
“Sem o FMI, estamos melhor”, disse Evo na abertura de uma conferência internacional sobre os direitos indígenas em Santa Cruz de la Sierra. A política externa boliviana tem como objetivo se fortalecer num plano regional via ALBA, CAF, UNASUL e CELAC. Para isso, aposta num afastamento do FMI e do Banco Mundial (representantes das receitas neoliberais), com o intuito de promover a integração latino-americana. Evo não cansa de dizer, em seus comícios, que é um verdadeiro bolivariano.
Evo acusa os EUA de tentar impor velhas políticas imperialistas em seu país, sob o pretexto de combater a produção de coca e lutar contra o narcotráfico. Os chanceleres de Evo apontam para uma política externa de afastamento da Aliança do Pacífico, projeto encabeçado por interesses estadunidenses para criar uma área de livre comercio, e que conta com a adesão de Colômbia, Chile, Peru, México e Costa Rica, para funcionar como uma “alternativa” à ALBA e ao Mercosul . A Bolívia também se coloca contrária às políticas do Estado de Israel na faixa de Gaza e tem anunciado que irá reconhecer a Palestina como Estado independente.
A cooperação com a ALBA tem dado bons resultados para o país. A partir da vinda de médicos cubanos, em troca de gás por preços privilegiados, a Missão Milagre promove operações gratuitas de cataratas e outras doenças oculares na população marginalizada boliviana. Ainda na saúde, os médicos cubanos também prestam assistência médica aos bolivianos nas suas próprias comunidades. Entretanto, os maiores avanços sociais na Bolívia encontram-se na área da educação básica. Por meio do método “Sim, eu posso”, desenvolvido por Cuba, a UNESCO declarou, em agosto deste ano, a Bolívia como um país livre do analfabetismo.
Para intensificar ainda mais as relações com o continente, Evo têm participado de uma série de reuniões para negociar a adesão do país ao MERCOSUL. A chancelaria boliviana projeta um país cujo papel terá dupla personalidade no Cone Sul, uma vez que pertencerá simultaneamente ao MERCOSUL e, ao mesmo tempo, à Comunidade Andina de Nações (CAN), pacto também integrado por Colômbia, Peru e Equador.
Desafios
Em termos sociais, o maior desafio do MAS e do governo Morales é melhorar os péssimos índices do país: a Bolívia, mesmo com alguns avanços significativos, continua sendo um dos países mais pobres da América do Sul.
No plano econômico, o governo do MAS tentará diversificar a economia boliviana, altamente dependente de seus recursos naturais. Para isso, Evo e seus partidários terão que se deparar com a questão dos direitos da natureza defendidos pelos povos e nacionalidades indígenas do país. O princípio do bem-viver (sumak kawsay) se coloca como fundamental contradição para a pavimentação do projeto governista de criação de um “capitalismo andino amazônico”. Ao mesmo tempo, Evo não poderá renunciar às bases que impulsionaram sua chegada à Presidência. Em contrapartida, os movimentos sociais (cocaleiros, sindicais, indígenas, etc.) esperam que o governo faça valer a Carta Magna.
Por fim, Evo terá que equacionar o problema da desaceleração chinesa e das altas quedas do preço do barril de petróleo. Com a queda das commodities no mercado internacional também terá seu impacto na Bolívia. Somado a essa conjuntura, há um nítido desgaste dos governos considerados antineoliberais na região. Com a eleição de Macri na Argentina, a recente derrota parlamentar do chavismo na Venezuela e abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff no Brasil, as forças progressistas parecem perder força na América Latina.
O grande desafio do MAS é integrar a sociedade boliviana ao mundo moderno em condições equitativas, considerando que a Bolívia não possui indústrias que possam competir no mercado internacional. Do mesmo modo, é lutar para construir estruturas sociais e econômicas com um horizonte socialista que, necessariamente, vislumbre igualdade, respeito à natureza, liberdade e democracia.
Caro Gustavo, penso que Evo está em diversas encruzilhadas. Uma delas é tensão entre desenvolvimento e meio ambiente, que na Bolívia se expressa em escolher entre industrialização ou Vivir Bien. Em alguma medida, essas duas questões encontram seu ponto de conflito. Qualquer das alternativas que o governo escolha, vai levar à perda de parte de seu eleitorado. Investir na industrialização, creio que seja a melhor opção para sustentar as mudanças que ocorreram na última década, mas não vejo como realiza-la sem associar-se ao capital transnacional. Por qual alternativa Evo e Linera optarão? Certamente, a conta será feita em votos a ganhar e a perder. Abraço.
Olá Marcelino,
Muito obrigado pelo comentário!
Sem dúvidas a Bolívia encontra-se em um momento chave para a transição das suas estruturas econômicas e politicas. Para isso, se faz necessário vislumbrar a consolidação de um Estado Plurinacional. Não se trata apenas de sair do modelo “neoliberal” e caminhar para políticas mais inclusivas em relação aos indígenas. Conforme pontuado, as forças dos movimentos indígenas já não podem ser negadas em qualquer análise da conjuntura boliviana. Mais do que isso, hoje são uma classe de uma magnitude indiscutível no território andino, sem a qual é impossível pensar o futuro e o passado do país. Com o intuito de desenvolver suas forças produtivas, a Bolívia está vivendo um momento sui generis de sua história. O grande desafio é conciliar desenvolvimento com a bandeira indígena do bem-viver. Em termos econômicos, por meio da política de nacionalização dos hidrocarbonetos, o Estado continuará tendo participação decisiva na produção e industrialização do gás boliviano, principal recurso natural do país. A equação a ser resolvida é a seguinte: como potencializar as forças produtivas do país; sem, ao mesmo tempo, fortalecer uma classe burguesa reacionária que, com o passar do tempo, poderá romper com o governo levando à sua derrocada? Por fim, acredito que a fase boliviana está diante de uma etapa crucial: ou o processo se aprofunda e adquire um perfil efetivamente revolucionário ou se restringe ao reformismo, com o sério risco de alguma fração das classes dominantes assumirem uma posição predominante ou mesmo hegemônica nos próximos anos. Para a afirmação do governo, Evo terá que vencer o referendo, previsto para o próximo mês de fevereiro, onde haverá uma consulta sobre a possibilidade seu quarto mandato. O desafio continua sendo mudar uma Bolívia tão rica em recursos naturais, porém tão desigual no usufruto coletivo dessas riquezas. Forte abraço!