Mudança tecnológica e economia mundial: ascensão chinesa no 5G

Nos últimos trinta anos, o ritmo acelerado da mudança tecnológica transformou profundamente a vida cotidiana das pessoas, mudando os meios pelos quais estas acessam o mundo. Embora a sociedade moderna registre, colete e analise seus dados desde há muito tempo, apenas recentemente o poder das tecnologias permitiu o uso de dados em tempo real. Na atualidade, quase todas as nossas atividades deixam rastros digitais: quando compramos alimentos no supermercado, remédios na farmácia ou nos comunicamos com nossos familiares ou amigos. A era informacional, portanto, intensificou a capacidade de coleta de grandes quantidades de dados e ampliou o alcance e a velocidade da transmissão de informações.

Do ponto de vista estratégico e militar, a questão informacional (i.e. a capacidade de coleta, análise e processamento de dados) tem importância central.   Isso porque, dentre as diferentes modernas modalidades de conflitos, a guerra cibernética apresenta-se não apenas como uma extensão da estratégia militar e do conflito para o ambiente em rede, mas também como a disputa entre os Estados em alavancar seus sistemas de informação para fins de poder político, econômico e social[1].

Em termos econômicos, a tendência recente se fundamenta na aplicação de tecnologias digitais (baseadas na Internet) aos processos produtivos e ao comércio de bens e serviços. A ascensão e consolidação de uma lógica econômica[2] baseada não apenas na comercialização de dados, mas na rentabilização de tecnologias capazes de aprimorar a questão informacional, só foi possível graças às inovações disruptivas e os modos de organização da cadeia de valor. Nos setores industriais de ponta, como a microeletrônica e a aeroespacial, a aplicação dessas tecnologias à produção se estrutura em sistemas ciber-físicos (CPS), monitorando processos, criando cópias virtuais da realidade e tomando decisões descentralizadas. De modo geral, esses sistemas se comunicam e cooperam entre si através da Internet das Coisas (IoT)[3] e da Internet dos Serviços  (IoS)[4], o que possibilita fornecer serviços organizacionais tanto de gestão interna como de dimensão externa, os quais podem ser utilizados pelos participantes das cadeias de produção.

A participação da China nesse processo foi enorme. Nos últimos vinte anos, a ascensão chinesa alterou o equilíbrio de poder na economia e no sistema de comércio mundial. Isso porque o gigante asiático foi capaz de se transformar num dos polos de dinamismo da economia mundial, ao se tornar a cadeia produtiva do mundo, exercendo enorme impacto de ponta-a-ponta, isto é, tanto na demanda (de commodities) como na oferta (de bens industriais). Nesse sentido, o rápido desenvolvimento do país ajudou a produzir inovações incrementais em setores da indústria, como nos equipamentos e peças para construção de grandes pontes, sistemas de mobilidade, trens de alta velocidade, etc. Mais importante, no entanto, é a contribuição disruptiva da China para a tecnologia 5G.

A Huawei Technologies Co. Ltd é o exemplo da mudança da inovação de caráter incremental para a modalidade radical. Em grande medida, a influência da Huawei no design do 5G decorre de seu enorme orçamento de pesquisa e desenvolvimento e de suas contribuições agressivas para as reuniões ao redor do mundo em que os engenheiros desenvolveram para “arquitetura[5]” subjacente do 5G. Em 2010, a empresa demonstrou um avanço na tecnologia móvel que atingiu uma velocidade de downlink de até 1,2 gigabytes por segundo[6]. Como resultado da acumulação tecnológica, no início de fevereiro de 2019, o sistema empresarial chinês (composto, para além da Huawei, pela ZTE, pela China Academy of Telecommunications Technology e pela Guangdong Oppo Mobile Telecommunications Corp.) detinha 36% de todas as patentes essenciais do padrão 5G, mais que o dobro da sua parte de patentes em relação ao 4G. As patentes chinesas em 5G, portanto, cobrem a tecnologia associada a tudo, desde componentes para aparelhos de telefonia até estações base e tecnologia de carro sem motorista. Em outras palavras, isso significa que empresas de telecomunicações em todo o mundo – incluindo aquelas que operam em locais onde os equipamentos da Huawei podem estar fora dos limites – terão que pagar royalties à Huawei para licenciar essa tecnologia quando chegar a hora de colocar tais redes em operação. Em resumo, a empresa chinesa detém grande fatia do mercado mundial de equipamentos de telecomunicações 5G e sua estação base tornou-se um padrão do setor[7].

Do ponto de vista estratégico-militar, então, a questão dos equipamentos de telecomunicações, como os equipamentos de torre de celular, são cruciais.  No atual modelo digital, tais dispositivos são amplamente isolados dos sistemas centrais que lidam com grande parte do tráfego de voz e dados de uma rede. Entretanto, no mundo da IOT e do 5G, o hardware de torre de celular assumirá tarefas do núcleo (ver figura 1 abaixo). Tal hardware pode ser utilizado para interromper as centrais (provedoras de serviços de internet e infraestrutura crítica) por meio de ataques cibernéticos.

Figura 1 – Rede 5G

Fonte: Fildes (2020)

A ofensiva dos Estados Unidos contra a China

Em meados de 2018, mirando um suposto roubo de propriedade intelectual americana e ameaça à segurança nacional, o governo Trump adotou medidas contra os chineses que incluíram, além de tarifas, proibir que empresas de telecomunicações norte-americanas instalassem equipamentos estrangeiros, redução de vistos a pesquisadores e restrições a investimentos do país asiático nos Estados Unidos. Embora inicialmente sobressaísse a retórica do presidente Trump sobre a questão comercial – associava-se a balança desfavorável à perda de empregos e competitividade dos norte-americanos-, o centro da disputa foi muito além das commodities convencionais, quer dizer, centrou-se na tecnologia do 5G.

A questão da espionagem industrial é um tema recorrente, especialmente no setor militar. Nos últimos anos, dois casos chamaram atenção. Em 2009, o programa Joint Strike Fighter, também conhecido como F-35 Lightining II foi alvo de ciberespionagem, cujas suspeitas de ex-oficiais do governo norte-americano recaíram sobre a China. Mais tarde, o  Chengdu J-20, primeiro caça de quinta geração da China, foi criado não apenas para servir como concorrente do F-22 Raptor americano, mas de várias maneiras, como uma cópia direta. Os planos para o projeto da empresa do setor aeroespacial e defesa, Lockheed Martin, foram alvos de espionagem por um cidadão chinês chamado Su Bin, que foi condenado a 46 meses de prisão federal. A despeito da retórica norte-americana contra a China, as práticas de espionagem e vigilância são frequentemente utilizadas, sobretudo pelos norte-americanos, como ficou explicito nas revelações de Edward Snowden em 2013.

Desde 2012, os Estados Unidos demonstravam a preocupação com a ascensão dos produtos tecnológicos chineses. Neste mesmo ano, foi publicado um relatório investigativo do Congresso norte-americano, que classificou a Huawei como ameaça à segurança nacional. Em março de 2018, a investigação da Seção 301 do Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (Office of the U.S. Trade Representative’s – USTR) sobre a apropriação indevida de propriedade intelectual pelos chineses renovou as atenções. Mais tarde, em junho de 2018, a Casa Branca publicou o relatórioHow China’s Economic Aggression Threatens the Technologies and Intellectual Property of the United States and the World”. O estudo argumentou que, através das estratégias, como a “One Belt, One Road” e “Made in China 2025”, a China procurava agressivamente adquirir tecnologia e propriedade intelectual dos Estados Unidos por meio de vários vetores, incluindo roubo físico e cibernético; transferências forçadas de tecnologia, esquivando-se dos controles de exportação dos Estados Unidos; restrições à exportação de matérias-primas; e investimentos em mais de 600 ativos de alta tecnologia nos Estados Unidos. Ainda que parecesse exagerado, tal diagnóstico encontrou apoio entre expertos no tema.

Denúncia publicada em outubro de 2018 na Revista Businessweek afirmou que uma empresa dos Estados Unidos, a Supermicro, estava instalando microchips espiões da China em placas-mãe utilizadas em computadores e servidores de empresas como a Apple e Amazon. Na mesma época, a administração Trump iniciou campanha junto a aliados estrangeiros, sobretudo na Europa, para tentar convencer provedores de internet e wireless a evitar o uso de equipamentos de telecomunicações da Huawei em redes governamentais e comerciais.  Contudo, no início de 2020, a União Europeia e o Reino Unido, histórico aliado dos Estados Unidos, decidiram conceder acesso limitado à chinesa Huawei na sua futura rede 5G.

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Para além da Europa, a ação dos Estados Unidos contra o avanço da China na construção de redes de telefonia, data centers, sistemas de TI abrange governos na Ásia, na África e, mais recentemente, na América Latina. No início de fevereiro de 2020, o Procurador-Geral dos Estados Unidos, William Barr, afirmou que os Estados Unidos e seus aliados deveriam considerar combater o poder da gigante chinesa de eletrônicos Huawei Technologies Co., interessando-se financeiramente pelos concorrentes Nokia Corp. e Ericsson AB

O Acordo Comercial entre China e Estados Unidos

Em 15 de janeiro de 2020, os Estados Unidos e a China assinaram a primeira fase de um acordo para por fim à guerra comercial. A resolução englobou mudanças nas áreas de propriedade intelectual, transferência tecnológica, agricultura, serviços financeiros, moeda estrangeira e câmbio.  Em termos comerciais propriamente ditos, do lado chinês, seguindo a demanda do mercado interno, as empresas comprarão US$ 40 bilhões (R$ 167,24 bilhões) em produtos agrícolas dos Estados Unidos anualmente nos próximos dois anos, com base nas condições do mercado. Está prevista a importação adicional de produtos agrícolas americanos aos chineses em US$ 12,5 bilhões no primeiro ano da resolução e de US$ 19,5 bilhões no segundo ano. Os Estados Unidos, por outro lado, reduziram de 15% para 7,5% as tarifas em bens de consumos importados da China (US$120 bilhões).  Abaixo, a figura 2 apresenta um balanço geral do acordo.

Documento divulgado pelo USTR aponta que os chineses terão que se comprometer a tomar uma série de medidas, como não pressionar mais empresas americanas a fornecer suas tecnologias como moeda de troca para ter acesso ao mercado do país asiático. Além disso, está previsto que a China deverá acabar com barreiras a serviços financeiros, que abrangem tanto limitações a capital estrangeiro dentro do país asiático quanto a serviços bancários, de seguros, de valores mobiliários e de classificação de crédito.

Figura 2 – Acordo Comercial Estados Unidos e China

Fonte: Cagliari e Moura (2020)

Crise Global do COVID-19 e perspectivas para o 5G

Embora a administração Trump tenha obsessão pela questão comercial, tais aspectos estão apenas lateralmente conectados às habilidades dos Estados Unidos em tecnologias high tech. Isso porque as vantagens da China resultam, em grande medida, não de uma conduta ilegal – ainda que as ações chinesas criem um campo de desigual de disputa-, mas do peso do país em termos de investimento global e em participação nas cadeias produtivas globais. Daí a estratégia de Trump de buscar limitar a ubiquidade dos produtos chineses em tecnologia 5G, que ganhou reforço pela redução da atividade econômica causada pela crise do Coronavírus ou COVID-19. Em outras palavras, a crise de saúde global, além de possivelmente levar a um grave problema econômico sem precedentes na história, cria oportunidade para que empresas multinacionais transfiram a produção para fora da China, ou busquem uma reconversão industrial para enfrentar a crise e o fornecimento de bens industriais hospitalares, como os ventiladores médicos, por exemplo. Isso poderia ser um ponto de virada no cenário industrial asiático.

A despeito de a China ter diminuído grande parte da sua atividade econômica devido a crise de COVID-19, a produção da indústria high-tech não cessou, mesmo na zona manufatureira de Wuhan, na província de Hubei, epicentro da pandemia no país. Essa obstinação chinesa pela liderança tecnológica pode se justificar pelas ambições geopolíticas da China enquanto grande potência em ascensão. Com a recente e relativa estabilização da situação, os chineses agora exploram o aparente sucesso no combate à epidemia como uma oportunidade de polir as credenciais de soft power com a Europa e outros países, ao enviar médicos e enfermeiras e doar milhares de máscaras  para Itália e Holanda, por exemplo. Tal “diplomacia das máscaras” pode trazer bons frutos aos chineses no campo do 5G, dado que os chineses afirmam que as redes em 5G da Huawei em Wuhan foram cruciais controlar a epidemia através de serviços que não são da coleção de dados, como diagnósticos e monitoramentos remotos, transmissões de imagens em alta resolução.

No cômputo geral, as pressões norte-americanas foram parcialmente bem-sucedidas, pois as vantagens industriais da China são consistentes. Os resultados práticos das tarifas, no entanto, conseguiram trazer os chineses para mesa de negociações. Dessa maneira, pode-se dizer que a questão mais importante não é quanto tempo a guerra comercial irá durar, mas sim se as frustrações dos Estados Unidos, que estimularam a disputa num primeiro momento, serão adequadamente respondidas[8]. Numa palavra, o que trará uma resposta para a disputa é o grau de ameaça que a China representa para os Estados Unidos em termos de poder hegemônico, o que no cenário sem precedentes de pandemia parece cada vez maior.


Referências

CAGLIARI, Arthur; MOURA, Júlia. EUA e China assinam ‘fase 1’ de acordo que pode pôr fim à guerra comercial. Folha de São Paulo. São Paulo, 15 janeiro de 2020.

FILDES, Nic. Vulnerabilidade à espionagem preocupa grupos. Valor Econômico [Financial Times]. São Paulo [Londres], 21 de janeiro de 2020.


[1]    Essa ideia remete ao pensamento clássico de Carl von Clausewitz sobre guerra, isto é, que a guerra fazia parte do continuum que inclui comércio, diplomacia e todas as outras interações que ocorrem entre povos e governos. Cf. BROSE, Christian. The New Revolution in Military Affairs: War’s Sci-Fi Future. Foreign Affairs, v. 98, May-June, 2019; POWERS, Shawn M.; JABLONSKI, Michael. The real cyber war: The political economy of internet freedom. University of Illinois Press, 2015.

[2] WEST, Sarah Myers. Data capitalism: Redefining the logics of surveillance and privacy. Business & Society, v. 58, n. 1, p. 20-41, 2017; ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Profile Books, 2019.

[3] A semântica dessa expressão remete à ideia de uma rede mundial de objetos interconectados e unicamente endereçáveis, baseado em protocolos de comunicação padrão. Cf. FURTADO, João. Indústria 4.0: a quarta revolução industrial e os desafios para a indústria e para o desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), 2017.

[4] A Internet dos Serviços consiste nos participantes, infraestrutura, modelos de negócio e serviços em si, que são possibilitados pelo uso da internet. Eles são oferecidos e combinados em serviços com valor agregado por vários fornecedores e comunicados para usuários e consumidores, e podem ser acessados por vários canais. Cf. Furtado (2017).

[5] Entendida aqui como “arquitetura tecnológica”, isto é, um complexo de regras, padrões publicados e protocolos de interface. Cf. MORRIS, Charles R.; FERGUSON, Charles H. How architecture wins technology wars. Harvard Business Review, v. 71, n. 2, p. 86-96, 1993

[6] YIP, George S.; MCKERN, Bruce. China’s next strategic advantage: From imitation to innovation.  Cambridge: MIT Press, 2016.

[7]  Cf. Yip e McKern (2016).

[8]  KENNEDY, Scott. Protecting America’s Technology Industry from China: Tariffs aren’t the answer. Foreign Affairs, Aug. 2018.