Em meio aos atos de memória da população pelos 18 anos do Marzo Paraguayo, nos primeiros dias de abril eclodiu em Assunção uma nova manifestação, que já vem sendo chamada localmente de “el nuevo Marzo Paraguayo”: mais de 200 detidos e cerca de 30 feridos durante o ato em frente ao Congresso Nacional. Um jovem foi morto. A Ponte da Amizade, entre Brasil e Paraguai, foi fechada por manifestantes de Ciudad del Este.

Mas o que está havendo para que a população esteja assumindo postura tão reativa? Este é o primeiro de dois artigos que visam analisar brevemente a atual crise política paraguaia e seus reflexos regionais.

Empresário do ramo do tabaco, Horácio Cartes venceu as eleições de 2013 como um outsider da política e criou muita expectativa junto à população. Com maioria no Congresso e em meio a um cenário de desprestígio da classe política, conseguiu apoio para implementar reformas econômicas, buscando maior inserção internacional do Paraguai.

Historicamente, todo presidente paraguaio, quando sobe ao poder, é questionado sobre seu interesse em buscar meios para se reeleger. Com Cartes não foi diferente. Quando questionado, afirmou que deixaria o mandato em 2018. O tema é delicado porque o artigo 229 da Constituição do Paraguai define que presidente e vice-presidente “não poderão ser reeleitos em nenhum caso”. Visivelmente, uma limitação às tentativas de perpetuação no poder, providência tomado pelos constituintes de 1992, logo após os 35 anos da ditadura de Stroessner. Portanto, somente uma alteração na Constituição poderia instituir a reeleição no país.

A emergência de um novo panorama de crescimento econômico no Paraguai levou Cartes a adotar uma nova postura e a buscar apoio para a reeleição.

Em 25 de agosto de 2016, os senadores votaram contra a proposta de emenda para permitir a reeleição. O regimento do Senado define que, se uma pauta for rechaçada, ela só pode voltar a tramitar depois de um ano. Ou seja, 25 de agosto de 2017 – o que seria muito tarde para a candidatura e uma possível reeleição de Cartes.

Por conta disso, o Partido Colorado organiza, desde o ano passado, a campanha “Que la gente decida”. Até pouco antes da eclosão da crise, o Partido havia coletado mais de 360 mil assinaturas de eleitores solicitando uma emenda constitucional que permita a organização de um plebiscito em que a população paraguaia decida pela alteração na Constituição, autorizando a reeleição para presidentes e governadores. O Partido Liberal (PLRA) e demais grupos opositores alegam que o Partido Colorado promoveu falsificações e que funcionários públicos foram obrigados a assinar a petição. Os colorados desmentiram, afirmando que apenas 10% das assinaturas vêm do funcionalismo público. Outros grupos afirmam que uma mudança constitucional de tal envergadura só pode ser referendada pelo Legislativo e não por meio de um plebiscito. Com as assinaturas, os colorados pretendem pressionar a Câmara dos Deputados a tramitar o tema.

O mais curioso de todo esse processo é ver o Partido Colorado tendo como seu principal aliado a Frente Guasú, tradicional opositora de esquerda, do ex-presidente Fernando Lugo. Antes contrário à reeleição e agora sabendo que pode se beneficiar da emenda, Lugo mudou de posição e é um dos principais expoentes da aliança entre os setores da direita e da esquerda em prol da emenda. Curiosamente, Lugo despontou como líder da resistência quando se levantou contra uma manobra parecida, do então presidente Nicanor Duarte, em 2006.

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O presidente do Senado, Roberto Acevedo, do Partido Liberal (PRLA), se recusou a colocar a proposta em pauta, deixando de ser reconhecido como líder pelos senadores a favor da emenda.  O primeiro vice-presidente, Eduardo Petta, não estava presente. Julio César Velázquez, segundo vice-presidente do Senado, se autoproclamou presidente da Casa.

Na tarde do dia 31 de março de 2017, aqueles que apoiam a reeleição criaram uma espécie de “Senado paralelo” para aprovar mudanças no regimento interno do Senado e, em seguida, o projeto de emenda. Os senadores não votaram no plenário do Senado e sim em um gabinete do Congresso, em um encontro convocado de surpresa. Enquanto a polícia rodeava o prédio, os senadores, sob liderança de Velázquez, aprovaram a emenda em sessão extraordinária. As alterações regimentais ajustaram a maioria necessária para aprovação das emendas, de dois terços para simples, e tiraram o poder do presidente do Senado para acolher ou rejeitar os projetos de lei.

Os senadores governistas anunciaram a reunião quando já estava prestes a acontecer, para evitar o quórum máximo. Com a mudança no regimento, seriam necessários 23 dos 45 senadores para a aprovação da emenda, fato conquistado pelos 25 que estavam presentes.

Do lado de fora, o grupo que se uniu em frente ao Congresso foi tomando corpo à medida que a repressão policial aumentava, especialmente nas ruas próximas, com bombas de gás, jatos d’água e balas de borracha. A repercussão nas redes sociais foi imediata, o que levou o Ministro de Interior, Tadeo Rojas, a suspender a ordem de repressão policial. Com isso, os manifestantes ocuparam o prédio. Do lado de fora, o fogo ateado na guarita se espalhou por uma parte do prédio. A repressão policial retornou e o Corpo de Bombeiros teve de agir em meio ao avanço do ato e das balas de borracha.

O ápice da crise ocorreu já na manhã de sábado, 1º de abril, quando a polícia invadiu a sede do Partido Liberal (PRLA) disparando contra os que ali estavam. Rodrigo Quintana, de 25 anos e membro do segmento jovem do Partido, foi morto. Nesse momento, as autoridades investigam o caso. Os liberais afirmaram que “os rastros da ditadura continuam vigentes no Paraguai”.

Mesmo senadores da Frente Guasú, que apoia a emenda e que condenou a ação popular, afirmaram que a reação policial foi desmedida e muito violenta.

Após os acontecimentos críticos do final de semana, o presidente Horacio Cartes organizou uma mesa de diálogo que pudesse unificar as partes. A primeira reunião ocorreu na quarta-feira, 5 de abril, mas foi esvaziada posteriormente pelo presidente do Senado, Acevedo, afirmando em comunicado oficial que o diálogo está congelado enquanto não for retirada a proposta de emenda aprovada pelo grupo dos 25 senadores. Para ele, Cartes pretende, com a mesa de diálogo, ganhar tempo e desmobilizar a população.

Desde então, todos os que estão a favor da proposta não têm comparecido mais às sessões convocadas pelo presidente do Senado, Roberto Acevedo, alegando que este não os representa. Esse é o atual impasse no Paraguai.