Certos elementos da memória histórico-cultural da China ressoam ainda hoje na elaboração de suas políticas doméstica e internacional e, concomitantemente, são articulados pelo Politburo chinês como forma de forjar uma “identidade chinesa” no cenário global em transformação e fortalecer o “espírito nacional” chinês.

Esta memória histórico-cultural está fortemente vinculada a fontes textuais registradas, grande parte, num período turbulento denominado de Estados Combatentes (475 a.C. – 221 a.C.), no qual houve extensa produção política-filosófica chinesa. “A Arte da Guerra” (孫子兵法 – sūn zĭ bīng fǎ) de Sunzi (Sun Tzu), os “Analectos” ( lún yǔ) atribuídos a Konzi (Confúcio), e “Zhuangzi” (莊子) atribuído ao filósofo de mesmo nome, são compilações clássicas deste período. Nelas, podem ser encontradas elaborações iniciais de modelos civilizacionais, instituições políticas e bases ético-morais que remetem a eventos do período Neolítico chinês (aprox. 2000 a.C.).

Questões espaciais e temporais (expansões e retrações dinásticas), étnicas, linguísticas e comportamentais (compartilhamento de costumes e valores) foram fundamentais para a definição de uma perspectiva de identidade propriamente chinesa – Zhōngguórén (chineses) – em contraposição aos povos que compartilhavam outros sistemas de valores – Yídí (bárbaros). É possível notar, ainda hoje, que esta perspectiva de “identidade chinesa” projeta-se nas tratativas do governo central da RPC com as regiões periféricas dissidentes de Tibet, Xinjiang e Taiwan, bem como nas relações internacionais do país.

Esse suposto sistema de valores, virtudes (任- Rén – humanidade/benevolência) e rituais (里- Li) – personificado nas figuras dos “imperadores-sábios” Yao, Shun e Yu por Confúcio – é novamente explorado pelo Politburo chinês numa espécie de confucionismo revisitado tanto para asseverar a “identidade chinesa” diante da comunidade internacional – dada sua ampliada inserção -, quanto para assegurar internamente uma coesão social pautada pelo patriotismo que legitime o discurso da origem linear de uma autoridade centralizada.

É interessante destacar, como ilustração, as mudanças semânticas que os termos revolução (革命 – gémìng), democracia (民主 – mínzhǔ) e direitos humanos (人权- rénquán) tiveram da China antiga para a China moderna, sobretudo após a revolução comunista de Mao Zedong. Revolução (gémìng – gé significa “mudança, transformação” e mìng significa “ordem de vida”) na antiguidade chinesa guardava relação apenas com as trocas dinásticas: o “Mandato do Céu” (天命 – Tiānmìng) era perdido por um imperador e reconquistado por outro. Tinha, portanto, acepção elitista e mais próxima de uma “restauração” do que propriamente de uma “revolução”. No final da dinastia Qing (1644-1911), o contexto estava marcado pela oposição ao domínio da minoria Manchu (5 milhões) sobre a maioria étnica Han (400 milhões), pela influência dos radicais japoneses da era Meiji e dos ideais da Revolução Francesa, por ressentimentos provocados pela primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) e pelo imperialismo ocidental. Assim, o termo “revolução” passou a associar nacionalismo com ideias como cidadania e justiça social, que eram diametralmente opostas à tradicional filosofia política da China imperial. Este primeiro modelo moderno revolucionário perspectivou a China, de modo pioneiro, como uma nação baseada em etnia, soberania, transformação social e história evolucionária – não mais cíclica, como na antiguidade. Doravante, a proposta revolucionária do Partido Comunista Chinês (PCC) a partir de 1921 teve de levar em conta que não só o país não tinha maturado as contradições do capitalismo necessárias ao esquema evolucionário para o comunismo, como também que a maior composição da sociedade chinesa era de camponeses, e não de proletários. Logo, o termo “revolução” passou a ser usado de maneira crescentemente politizada pelo PCC, para designar não apenas uma mudança política, mas também uma agitação social. Neste ínterim, a “Nova Democracia” e os “direitos humanos” (em contraposição à “autoridade do clã” -族权 zúquán) não presumiam os direitos individuais liberais ocidentais, mas sim a participação de setores da sociedade chinesa que antes não tinham representatividade na elaboração política do governo.

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O debate acerca das influências que a memória histórico-cultural chinesa exerce na formulação de suas políticas revela-se particularmente relevante num momento em que, dada a cada vez mais pragmática inserção internacional chinesa, o governo central do PCC parece não prescindir da afirmação da identidade chinesa pautada numa mescla entre os preceitos maoistas de soberania e independência e os conceitos resgatados do confucionismo. Tais definições têm repercussões não só no âmbito governamental político doméstico e internacional, com o lançamento de conceitos como “mundo harmonioso” (和谐世界- héxié shìjiè), “sociedade harmoniosa” (和谐社会- héxié shèhuì) e “desenvolvimento pacífico” (和平发展- hépíng fāzhǎn); mas também repercutem em todo o espectro intelectual, na medida em que as políticas educacionais voltadas para o chamado Instituto Nacional de Aprendizagem (国学院- guóxuéyuàn) começam a estabelecer parâmetros estritos do que pode ser entendido como “história da China” e do que é “ser chinês” basicamente delineados a partir da interpretação dos clássicos confucionistas.

A retomada de postulados confucionistas para a harmonização social impulsionou uma relativa sinicização de teorias de relações internacionais, cujo expoente mais debatido tem sido a teoria Sistema Tianxia, elaborado pelo filósofo do Instituto de Filosofia da Academia Chinesa de Ciências Sociais, Zhao Tingyang. A publicação de seu livro Tianxia Tixi (天下体系 – literalmente Teoria Tudo-sob-o-Céu), em abril de 2005, ainda que apresente uma visão romantizada de uma Pax Sinica, fez dele um referencial nos círculos intelectuais da China, ajudando a estender sua influência para além dos limites da filosofia e a abranger a esfera das relações internacionais. A relevância da teoria vem, então, menos de um argumento sutil e mais de um posicionamento estratégico discursivo chinês em suas redes de poder.

Zhao foi motivado, bem como outros intelectuais chineses como Yan Xuetong, Zhu Feng, e Su Changhe, por uma intenção de “repensar a China”, de modo a repensar o mundo e desenvolver perspectivas chinesas e teorias da política mundial. O escopo é fornecer uma perspectiva nativa sobre as relações internacionais com a funcionalidade prática de preparar a China intelectualmente para um papel maior, mais construtivo e distinto nos assuntos mundiais. Pode-se argumentar, conforme propôs o professor do Centro de Estudos Americanos da Universidade de Fudan, Wang Yiwei, que os valores culturais tradicionais chineses, cujo epicentro é o conceito de “harmonia”, são a base da atração cultural chinesa na era da diversificação cultural e da globalização, e que devemos estar atentos para suas peculiaridades.

 

Indicação: ZHEN, Yongnian. (1999). Discovering Chinese Nationalism in China: Modernization, Identity and International Relations. Cambridge University Press. 208 p.