O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. […] e viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

Albert Camus, A Peste (1947).


O trecho acima é o ponto de partida para a reflexão, proposta nesse artigo, sobre a importância da interdisciplinaridade na pesquisa em temas relacionados à Saúde.

Em contraste com o modelo biomédico, o qual assume que as doenças são universais e invariáveis – e que saúde constitui-se pela ausência de doença, dor, ou defeito -, a construção social da doença é um conceito que aborda os aspectos históricos e culturais de fenômenos que eram, antes, percebidos como exclusivamente naturais/biológicos.

Primeiramente, é importante trazer para o debate a diferenciação entre disease e illness, palavras que podem ser traduzidas para a língua portuguesa como doença e enfermidade. De acordo com Eisenberg (1977), pacientes sofrem illness/enfermidades e os médicos diagnosticam e tratam diseases/doenças. O autor explica que enfermidade é a resposta subjetiva do paciente ao fato de não estar bem e como isso afeta seu comportamento e/ou relacionamento com outras pessoas. Por outro lado, doenças, no paradigma científico da medicina moderna, são anormalidades na função e/ou estrutura dos órgãos e sistemas do corpo. Torna-se, portanto, essencial integrar conceitos “científicos” e “sociais” de doenças e enfermidades.

No artigo The Social Construction of Illness: key insights and policy implication (2010), Conrad & Barker apontam que algumas enfermidades são particularmente imbuídas de significados culturais, os quais acabam moldando a forma como a sociedade responde a elas, sendo o conhecimento médico sobre doenças e enfermidades construído e desenvolvido pelas partes interessadas. Considerem-se, ainda, as reflexões de Michel Foucalt (1977) sobre como os discursos definem a realidade do mundo social – bem como das pessoas e das ideias que nele habitam: poder e conhecimento não são entidades independentes, mas estão intrinsecamente relacionados. O conhecimento é sempre um exercício de poder e o poder é sempre uma função do conhecimento. Para Foucault, o discurso médico constrói o conhecimento sobre o corpo, inclusive sobre as doenças, podendo assim influenciar o comportamento das pessoas, impactar suas experiencias subjetivas, moldar suas identidades e legitimar intervenções médicas.

Pode-se fazer aqui um paralelo. Nas Relações Internacionais, as abordagens que usam o gênero como categoria de análise procuram, nas instituições e normas do sistema internacional, explicações para a assimetria nas relações entre os gêneros e na constituição de identidades de homens e mulheres (Monte, 2013). Na Saúde, estudos feministas sugerem que o discurso e a prática médica atuam para naturalizar a desigualdade de gênero: “as mulheres são rotineiramente silenciadas ou apagadas como atores na produção de saúde, tanto na provisão como no recebimento de cuidados de saúde em si, bem como nas políticas de saúde” (Clarke & Olesen, p.3, 1999).

Além da construção dos discursos, a globalização também impacta – de forma complexa – o modo como as doenças são compreendidas e a concepção de políticas públicas, ambas moldadas por fatores que transcendem fronteiras. Seus efeitos são mediados pelo crescimento e pela distribuição da renda, pelo estresse da vida moderna e pela instabilidade econômica, pela disponibilidade de serviços de saúde e de outros serviços sociais.

Em um mundo no qual a globalização ultrapassa fronteiras, há um constante aumento da mobilidade espacial da população, ou seja, das migrações. Para os países de alta renda, o debate em torno das relações entre globalização e saúde tende a se concentrar mais na ameaça da potencial dispersão de certas infecções agudas e epidêmicas, como HIV/AIDS, tuberculose e mais recentemente, Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), Ebola e Zíka Virus.

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Por outro lado, é escasso o debate sobre os riscos que estes países vêm exportando para outras partes do mundo por meio de produtos como tabaco e fast food (Lee, 2003). As doenças não-transmissiveis (DNTs), também chamadas de doenças de ‘estilo de vida’, constituem um problema central nos países do Norte – responsáveis por 90% das mortes anuais no Reino Unido, por exemplo – e agora respondem pela maioria (53%) das mortes e incapacidades no mundo em desenvolvimento. As DNTs não são causadas por infecções e vírus, mas por “estilos de vida” como dieta inadequada, tabagismo, álcool e drogas.

Ademais, a velocidade dos modernos sistemas de transporte afeta a disseminação de doenças, as quais podem se mover potencialmente pelo mundo em poucas horas. A tecnologia moderna também melhora o acesso a medicamentos, informações médicas e treinamento, fatores que ajudam a tratar ou curar doenças.

O aumento e a velocidade do movimento de pessoas, que são consequências diretas da globalização, criam uma complexa equação de vantagens e desvantagens para cada sociedade.

Neste sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declara reconhecer que a ação doméstica não é suficiente para garantir a saúde localmente nem para abordar os riscos sanitários transfronteiriços. Por isso, a Organização tem focado em ajudar os países a avaliar e atuar sobre os riscos transfronteiriços objetivando a segurança da saúde pública, além de apoiar a ação coletiva para abordar estes riscos e melhorar os resultados em saúde (World Health Organization, 2018).

As questões de saúde têm sido objeto de cooperação política transnacional desde o século XIX. Os primeiros esforços internacionais, porém, restringiam-se a conter epidemias de doenças infecciosas. À medida que o mundo tornou-se progressivamente interconectado e complexo, a saúde passou a ser cada vez mais percebida como o resultado integrado de seus determinantes sócio-culturais, econômicos e institucionais.

A marginalização da política global de saúde no campo disciplinar de Relações Internacionais é surpreendente, dada a riqueza das interações políticas, a diversidade de atores públicos e privados envolvidos e a importância das políticas de saúde para o desenvolvimento das sociedades.

Superar a limitação do debate interdisciplinar contribuiria certamente para uma melhor compreensão da política internacional como um todo e a multiplicação de discussões ligadas a outros temas proeminentes nas relações internacionais, como conflitos e segurança, desenvolvimento, redução da pobreza, comércio, direitos humanos e governança global.


REFERÊNCIAS

CAMUS, A. A Peste [1947]. Rio de Janeiro, Record, 2017.

CLARKE, A; OLESEN, V. Revisioning women, health and healing: Feminist, Cultural, and Technoscience Perspectives. New York, Taylor & Francis, 1999.

CONRAD, P., & BARKER, K. The Social Construction of Illness: Key Insights and Policy Implications. Journal of Health and Social Behavior, S67-S79. 2010.

Eisenberg, L. Disease and Illness: Distinctions between Professional and Popular Ideas of Sickness. Culture, Medicine and Psychiatry. 1:9-23. 1977

FOCAULT, M. Vigiar e punir. Nascimento da prisão [1977]. Petrópolis, Vozes, 2014.

LEE, K. Globalisation: what is it and how does it affect health? Medical Journal of Australia, 180, p. 156-158. 2004. Disponível em: https://www.mja.com.au/journal/2004/180/4/globalisation-what-it-and-how-does-it-affect-health

MONTE, I. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais. Revista de Estudos Feministas [online]. 2013, vol. 21, n.1, pp. 59-80. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2013000100004&lng=en&nrm=iso

WORLD HEALTH ORGANISATION. Globalization and Health. 2018. Disponível em: http://www.who.int/trade/globalization_resource/en/