Defender a universalidade dos direitos humanos como processo, projeto e irradiação parece ser o caminho político mais sensato para a justificação internacional da dignidade inerente à condição humana. Já a proteção dos direitos fundamentais aparece como prerrogativa elementar do Estado democrático de direito, disposto a garantir efetivamente as liberdades subjetivas iguais. No entanto, muitas das principais democracias atuais parecem conviver, sem grandes fricções, com práticas políticas cada vez mais abusivas e desumanas, principalmente no que diz respeito ao drama global de aumento dos fluxos migratórios.

Medidas impopulares como encarceramento, maus-tratos, rebaixamento, ofensas e criminalizações de pessoas em situações vulneráveis se tornaram exemplos nítidos do show de horrores praticado por diversos países, seja na Europa ou, mais recentemente nos Estados Unidos. De modo corriqueiro, delineiam-se as principais contradições de nosso tempo: os mesmos países percursores da defesa da igualdade, da liberdade e da solidariedade cívica são os que se chocam com o descumprimento sistemático do direito, com a implementação de formas autoritárias de governo e modos alternativos de opressão dos mais fracos.

Podemos observar a ascensão de um tipo de “igualitarismo altérico”, na medida em que apenas uma parte dos seres humanos é considerada igual e livre – portadora dos direitos fundamentais –, com os demais sendo mantidos simultaneamente como indivíduos rebaixados, tal como ocorre com os miseráveis e os pobres imigrantes indocumentados. Ocultar essa realidade apenas serviria para apoiar indiretamente todas as violações, fomentando ainda mais a hipocrisia que permeia atualmente a proteção internacional dos direitos humanos e a distribuição dos direitos e deveres cidadãos.

Omitir significaria sustentar essa cegueira que se mantém quase inabalável nos contextos da desigualdade e da indignidade humanas. Não podemos mais ser indiferentes aos tratamentos lesivos avassaladores de nossa época, nos quais pessoas e agora crianças foram e são feridas física e psicologicamente em prol de uma ordem que ultrapassa o meramente imoral e transforma-se em comportamentos político-sociais repulsivos e de quasi-barbárie. Não menciono aqui episódios políticos isolados e de pouca significância social, ao contrário disso, refiro-me explicitamente aos termos defendidos, por exemplo, pelas políticas anti-imigração, nas quais Donald Trump é o caso mais recente e óbvio. Políticas essas, que se constituem como um germe deplorável – fruto do “domínio” –, que explora, inferioriza e escraviza historicamente o outro, categorizando homens e colocando-os uns contra os outros. Refiro-me a essas divisões que engendram uma estrutura doutrinal ultraconservadora, camuflada por discursos de “segurança social”, mas que nada mais pretendem do que reiterar as bases de uma sociedade totalitária fundamentada na discriminação e na intolerância.

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No entanto, seria ingênuo acreditar que esse mundo fabricado pelas perigosas perversões da consciência humana se restringe apenas a Donald Trump, bem como a sua política de tolerância zero ao imigrante ilegal. No ano passado, a relutância dos países europeus de aceitarem as cotas de distribuição dos imigrantes e refugiados provenientes da Síria, assim como as práticas políticas anti-imigração exageradas praticadas pelo Reino Unido (acompanhadas de proferimentos altamente xenofóbicos de importantes líderes políticos europeus), também serviram para mostrar que por detrás de cada discurso humanitário ainda persistem práticas diferenciadas de poder. A real proteção dos direitos humanos ocupa um papel subalterno.

A grande distância entre o que se diz e o que se faz em matéria de direitos humanos pode ser notada no vislumbre ulterior dos corpos de crianças afogadas nas praias europeias, nos campos desumanos do refugiado e nos recentes choros horrorizados de crianças presas em instalações que mais lembram jaulas. Não pretendo defender que a universalidade dos direitos humanos se esgota em seu abuso, mas intento, acima de tudo, lançar luz às relações desiguais de poder – norteadas pelas paixões, pelos ódios, pelos rancores e pela obscuridade dos interesses políticos orquestrados em redes de disputa pela dominação –, as quais ainda se mantêm como “guerras” ilusoriamente pacíficas e sem vítimas.

O melhor modo de avaliarmos a nova Era dos direitos e a eficiência da proteção humanitária seria a partir do ponto de vista das vítimas. Não para produzir uma espécie de “vitimização” da análise, mas simplesmente porque elas não são a personificação do poder, mas sim quem sofre com ele. São os seres humanos que são tratados como “danos colaterais” de um sistema “quase perfeito”, mas que infelizmente não satisfaz a todos. Daquelas vítimas que sofrem com um desvio autoritário de governo em prol de uma causa política maior. Penso nas dores sociais particulares e não me importa se nasceram deste lado da fronteira ou daquele. Somente a partir dessa reflexão, poderemos, de fato, avançar em formas realmente libertadoras de organização social. Pois, apesar de todos os avanços no campo internacional da proteção humana, ainda hoje pessoas são tratadas como “cotas de distribuição”; crianças são vistas como “moedas” para concessões políticas; e abusos humanos são praticados como forma de alcançar um tipo de “indenização financeira”. Nesse ínterim, a grande questão que se assenta na preservação igualitária da dignidade humana se perde em meio aos discursos democráticos vazios, que não hesitam em produzir e reproduzir vítimas.