Sanjukta Pandey deixou o emprego como cabeleireira e maquiadora em março para se dedicar à campanha de reeleição do primeiro-ministro Narendra Modi nas redes sociais.

A senhorita Pandey, uma animada garota de 32 anos que usa brincos enormes de argola, batom rosa néon e uma tatuagem com o nome do senhor Modi no antebraço esquerdo, agora passa horas de vigília divulgando a mensagem eleitoral do atual primeiro-ministro no WhatsApp e em outros aplicativos de mídia social. “Estou on-line quase 24 horas por dia. Eu não vou dormir; nós queremos o senhor Modi novamente”, diz ela. “Você não verá ninguém sendo tatuado com o nome de Rahul Gandhi.”

O partido indiano Bharatiya Janata (BJP) está usando o WhatsApp para empreender uma das campanhas políticas digitais mais sofisticadas do mundo, conduzida por um vasto exército de voluntários como Pandey, que se dedica à marca do nacionalismo hindu de Modi.

À medida que o acesso à Internet aumenta na Índia com a proliferação de smartphones e dados baratos, mais de 300 milhões de indianos estão agora no WhatsApp, tornando o país, de longe, o maior mercado do aplicativo.

Enquanto as campanhas anteriores costumavam ser conduzidas na TV e em grandes comícios, o WhatsApp se tornou o campo de batalha central da eleição da Índia, que começou em 11 de abril e terminará em 19 de maio.

A competição indiana segue a eleição polarizada do Brasil, onde o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro chegou ao poder em outubro – ajudado em parte por uma onda de rumores tóxicos e de desinformação, muitos deles espalhados pelo WhatsApp.

Agora, a Índia está se tornando o último caso de teste da capacidade do aplicativo de mensagens, cujos milhões de pequenos grupos de usuários criptografados muitas vezes estão fora do alcance das autoridades eleitorais ou verificadores independentes de fatos, para moldar potencialmente a eleição na maior democracia do mundo.

Para cada entusiasta que diz que o aplicativo ajudou a unir famílias e amigos com uma ferramenta de comunicação barata, há outros tantos críticos que temem que com ele ficou impossível monitorar a transmissão de notícias falsas.

“WhatsApp é a câmara de eco de todas as mentiras, falsificações e porcarias na Índia, é uma fossa tóxica”, diz Palanivel Thiagarajan, um funcionário eleito e chefe do departamento de TI da DMK, um partido regional do estado de Tamil Nadu que concorre contra o BJP. “Se dependesse de mim, eu diria apenas para cortá-lo, existem centenas de substitutos.”

O aplicativo de mensagens, que tem 1,5 bilhão de usuários em todo o mundo, ganhou popularidade, especialmente fora dos Estados Unidos, em países onde sua empresa-mãe, o Facebook, espera aumentar seus fluxos de receita.

Claire Wardle, pesquisadora da Universidade de Harvard e co-fundadora da First Draft, uma organização sem fins lucrativos que pesquisa a desinformação nas mídias sociais, diz que o WhatsApp decolou com a explosão de usuários de smartphones em países como Brasil, Nigéria e Índia, onde se tornou “uma das principais fonte de informação”.

“Essas questões sobre seu papel na disseminação da desinformação não estão relacionadas apenas a eleições”, diz ela. “É sobre o papel do WhatsApp nas sociedades, ponto final.”

Nos últimos anos, foi o próprio Facebook que atraiu a maioria das críticas em torno da disseminação de notícias falsas e manipulação eleitoral. O relatório do conselheiro especial Robert Mueller descreveu os extensos esforços de agentes  russos para manipular a eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016 usando o Facebook. Também foi criticado quando se noticiou que o exército de Mianmar estava usando a rede social para incitar a violência contra a minoria muçulmana Rohingya no país.

Mas é o WhatsApp, que o Facebook comprou por 22 bilhões em 2014, que se tornou a plataforma de comunicação preferida não apenas na Índia e no Brasil, mas também em toda a Europa, incluindo a Espanha e o Reino Unido. Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, disse que a forma íntima de comunicação do WhatsApp é o futuro do grupo Facebook.

“No último ano, vimos uma mudança do feed de notícias do Facebook para mais canais privados, incluindo o WhatsApp e o Messenger, especialmente em lugares como o Brasil”, diz Wardle.

Seu sistema de criptografia significa que, em contraste com o Facebook ou o Twitter, as conversas do WhatsApp são impenetráveis até para a própria empresa, dizem os executivos. Mas isso fez com que o app ficasse mais vulnerável ao uso indevido, especialmente nas eleições, dizem os críticos, que argumentam que se tornou uma plataforma para espalhar desinformação relacionada às campanhas.

Esse risco veio à tona no Brasil no ano passado, no que ficou conhecido como a primeira “eleição do WhatsApp”. Com 120 milhões de usuários do WhatsApp em um país de mais de 211 milhões, a plataforma ficou inundada antes da votação de outubro com rumores falsos, fotografias falsificadas e fraudes de áudio – muitas das quais ajudaram Jair Bolsonaro. Estudando 100.000 imagens que circulavam em 347 grupos, pesquisadores descobriram que apenas 8% delas  eram “totalmente verdadeiras”.

“A desinformação foi enorme no Brasil. Foi uma eleição marcada pelas fake news que deixaram para trás um país dividido ao meio pelo ódio”, diz Fabrício Benevenuto, da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador sobre o impacto da rede de mídia social. “A discussão política acabou sendo reduzida a um meme”.

Na Índia, o BJP tem sido o mais ativo dos principais partidos na tentativa de usar o WhatsApp para ganhar votos. “Estou tentando alcançar todos os lares pelo menos pelo WhatsApp”, diz Punit Agarwal, coordenador de mídia social do BJP para a região de Délhi.

Agarwal diz que o partido tem 74 mil voluntários encarregados de espalhar sua mensagem pelo WhatsApp. “Houve uma audiência limitada na última vez”, diz ele. “Desta vez, temos uma vasta audiência.”

O WhatsApp tornou-se a plataforma preferida dos políticos devido ao seu alcance massivo que vai além da base de eleitores fiéis de um partido, mas também devido à falta de “guardiões”. As mensagens encaminhadas pelo sistema não trazem o contexto de onde elas se originam, mas se beneficiam da confiança de terem sido enviadas por um contato muitas vezes conhecido.

Agarwal nega que o BJP esteja divulgando conteúdo polarizado, mas dados públicos do WhatsApp coletados por analistas e evidências mostram que os indianos estão sendo inundados por memes de propaganda, em grande parte anti-muçulmanos e críticos do Partido do Congresso da oposição. “Os grupos do WhatsApp são considerados os mais perigosos”, afirma SY Quraishi, ex-comissário eleitoral da Índia. “O potencial desastroso dessa mídia é muito forte; você viu como boatos flutuando [ao redor] podem causar estragos.”

Devido à extensa participação política via WhatsApp na Índia, a empresa disse que começou a planejar sua estratégia eleitoral antecipadamente. “Sabemos que os partidos políticos estão usando o WhatsApp para organizar, e decidimos fazer um teste [para monitorá-lo] durante a eleição de Karnataka”, diz Carl Woog, chefe de comunicações do WhatsApp, referindo-se às eleições regionais realizadas em maio passado.

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Desinformação e conteúdo polarizado

Na época, o WhatsApp descobriu que um dos partidos políticos, que Woog se recusou a nomear, criou um grande número de grupos simultâneos usando o nome do partido e estava adicionando várias pessoas a eles em um esforço óbvio para espalhar propaganda em contravenção às regras do WhatsApp. “Tivemos uma boa noção do que estava acontecendo e excluímos esses grupos”, diz ele, acrescentando que essa foi a primeira vez que a empresa observou esse comportamento de grupo viral.

Kiran Garimella, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que estuda desinformação na Índia, analisou mais de 5 milhões de mensagens do WhatsApp publicadas em 5.000 grupos públicos nos últimos cinco meses, cobrindo cerca de 1 milhão de pessoas.

“Temos observado que isso é especificamente focado em desinformação baseada em imagem, sutil,” diz Garimella, dando um exemplo de screenshots adulterados de um canal de notícias de boa reputação.

As principais imagens compartilhadas acusaram o líder do Congresso, Rahul Gandhi, de ser um “falso hindu” e inventaram um vínculo com Vijay Mallya, o empresário bilionário fugitivo da Índia. Uma mensagem favorita recorrente mostra Gandhi orando em uma mesquita, insinuando que ele é um muçulmano que busca deter os eleitores hindus.

Semelhante à campanha brasileira, os acadêmicos dizem que o WhatsApp está sendo usado por partidos para polarizar os cidadãos mediante atritos e tensões comunais.

“Sou membro de mais de 100 grupos do WhatsApp ativados formal ou informalmente pelos apoiadores do BJP”, diz Soma Basu, jornalista indiano e membro do Instituto de Jornalismo da Reuters. “Estou analisando 75.000 mensagens que recebi neste período, muitas das quais são muito perturbadoras e violentas, como um vídeo de um jovem sendo decapitado em nome da religião”.

A propaganda religiosa não é apenas um problema do WhatsApp e está se espalhando pelo Facebook, pelo Twitter, pelo aplicativo de mídia social indiano ShareChat e por outras plataformas, mas “o WhatsApp carrega a credibilidade do remetente, é mais privado e pessoal, então muitas coisas que não podem ser ditas no Twitter ou no Facebook circulam livremente no WhatsApp ”, diz Basu.

O estudo dos grupos políticos do WhatsApp no ​​Brasil revelou uma elaborada estrutura “piramidal” de como a desinformação se espalha na plataforma, em cascata de ativistas regionais e locais que atingem cidadãos individuais e seus amigos. Na Índia, a estrutura dos grupos políticos do WhatsApp também é estratificada e complexa.

O departamento de mídia social do BJP tem como alvo os eleitores indecisos com mensagens personalizadas, customizadas de acordo com o histórico de votação, classe e casta, diz um ex-analista de dados do partido, Shivam Shankar Singh. As mensagens quase nunca vieram dos canais oficiais do BJP, já que os grupos do WhatsApp se organizam fora do partido.

Ambos os principais partidos divulgam fake news, mas o “BJP envia mensagens com conteúdos religiosos fundamentalistas e comunais, o que o Partido do Congresso não faz. O [Partido do Congresso] compartilha muitas estatísticas falsas, mas elas claramente não têm uma estratégia sólida”, acrescenta Basu.

Apesar de sua enorme presença na Índia, o WhatsApp só contratou seu primeiro funcionário no país no ano passado. Desde então, o aplicativo tem lutado para conter uma torrente de notícias falsas na Índia – de boatos sobre sequestro de crianças a imagens falsas de ataques terroristas e corpos de pessoas mortas – o que contribuiu para surtos de violência e agitação de multidões. O WhatsApp diz que bane cerca de 400.000 contas na Índia todos os meses.

Em resposta às ameaças legais do governo indiano, que começaram em julho do ano passado e exigiram mudanças na forma de operação para melhorar a prestação de contas, o WhatsApp nomeou um oficial de queixas para lidar com as reclamações dos usuários e contratou seu primeiro chefe indiano, Abhijit Bose, em março.

Origem indeterminada

O maior desafio é que, ao contrário do Facebook, o WhatsApp não consegue identificar a origem de uma mensagem sem quebrar seu sistema de criptografia. Em vez disso, ele trabalhou para tornar o compartilhamento mais difícil, incluindo limitar o número de destinatários de uma mensagem encaminhada, reduzir os tamanhos dos grupos e permitir que os usuários recusem convites para grupos. Outras mudanças que estão sendo testadas incluem um serviço de verificação de imagens recebidas pelo aplicativo, que, porém, não será lançado a tempo para a eleição, diz Woog.

Essas medidas para limitar a “viralidade” tiveram impacto limitado, de acordo com acadêmicos independentes. “Vemos muitos casos em que a mesma mensagem foi enviada em vários grupos, mais de 20 grupos em uma janela de 10 segundos, o que significa que há uma pessoa ou software enviando as mensagens”, diz Garimella.

O WhatsApp diz que também gastou cerca de US$ 10 milhões na Índia para realizar uma campanha de educação pública sobre os perigos da desinformação na mídia tradicional, como televisão, rádio e jornais. “Acho que eu diria que, sem hipérbole, é provavelmente a maior campanha de educação pública sobre desinformação já realizada”, diz Woog.

Em conjunto com organizações terceirizadas, como a Boom Live, uma das verificadores de fatos independentes do WhatsApp da Índia, e a AltNews, bem como o grupo sem fins lucrativos Proto, a empresa está trabalhando em serviços oficiais de verificação de fatos durante a eleição.

Os esforços espelham os que foram empreendidos durante as eleições brasileiras pela organização sem fins lucrativos First Draft, quando um consórcio de jornalistas checou mais de 65 mil dicas e mensagens recebidas de usuários através de um número dedicado do WhatsApp.

“A maioria das coisas que estamos capturando ou verificando deve sua origem ao WhatsApp. Há notícias falsas no Facebook também, mas os números são pequenos em comparação com o WhatsApp. Recebemos centenas de relatórios por dia ”, diz Govindraj Ethiraj, fundador da BoomLive. O Facebook removeu recentemente centenas de páginas “inautênticas”.

Enquanto o Facebook e o WhatsApp estão confiantes de que asseguraram o bom funcionamento de suas plataformas na temporada eleitoral, os acadêmicos temem que os milhões de pessoas que entram pela primeira vez via WhatsApp em países emergentes sejam mais vulneráveis ​​a rumores e desinformação.

“É ótimo que WhatsApp esteja promovendo campanhas publicitárias e empregando outros mecanismos tradicionais, mas minha preocupação é que ele não alcance as pessoas que realmente o usam ”, diz Aviv Ovadya, fundador do Thoughtful Technology Project, na Califórnia. “Eles poderiam fazer isso no próprio WhatsApp, torná-lo divertido, bobo, interessante, de uma forma que as pessoas se envolvam com ele. Eles deveriam estar fazendo muito mais.”


Artigo publicado no Financial Times em 5 de maio de 2019. Tradução de Marcel Artioli.

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