Não somente nos Estados Unidos, o atual cenário da pandemia da Covid-19 acabou por forçar readaptações necessárias nas esferas política e econômica e, consequentemente, potencializou a ebulição de problemáticas sociais já presentes em diversas nações. A retomada do movimento do Black Lives Matter e a subsequente repressão policial aos protestos que assolaram o país são exemplos no caso norte-americano. No mesmo contexto, as campanhas eleitorais no país, mesmo que com algumas adaptações, ainda seguem seu ritmo. Logo, a realização da Convenção do Partido Democrata não seria diferente.

Realizada desde 1832, a convenção tem como objetivo principal nomear os candidatos oficiais à presidência e vice-presidência do partido nas eleições nacionais, marcando o fim da etapa das eleições primárias. Além disso, serve como uma forma de lançar uma plataforma oficial e do partido e de unificá-lo junto de seus membros e base. No cenário atual de divisões dentro das próprias siglas e de um descontentamento de uma parcela de eleitores democratas, a convenção, mesmo perante um cenário de pandemia, foi realizada em um formato virtual – o que pode se provar altamente benéfico para a imagem do partido.

Um “novo” Biden

Além de oficializar a candidatura de Joe Biden para o Partido Democrata, o DNC (Democratic National Convention) de 2020 buscou reformular a imagem de Biden com a parcela mais progressista e jovem de eleitores democratas. Com seu envolvimento em falas polêmicas e muitas vezes desconexas, o Partido Democrata havia adotado uma estratégia de buscar preservar a imagem de Biden o máximo possível, evitando uma alta exposição. Além disso, sua carreira no partido e posicionamentos em temas sociais acabaram por lhe garantir a imagem de um dos democratas mais conservadores. Somada a escolha da senadora Kamala Harris como vice-presidente na chapa democrata, a convenção buscou unir as alas mais progressistas e tradicionais da sigla frente à figura de Biden.

Logo, o desafio maior foi distanciar o candidato da imagem de um político antiguado e desatualizado das principais pautas sociais contemporâneas, ao mesmo tempo em que o tornasse uma opção mais viável para a parcela de eleitores menos motivada. Nesse sentido, a apresentação de Jill Biden como uma primeira-dama ligada à área da educação e o resgate da tragédia familiar enfrentada por Joe Biden serviram como momentos para construir uma simpatia eleitoral que, até o momento, não era tão forte com parte do eleitorado democrata.

 

A convenção virtual

A realização virtual do DNC, mesmo que uma clara necessidade por questões de saúde pública, permitiu a exploração de capital político em dois aspectos. O primeiro deles está intimamente ligado com o contato mais direto com seu eleitorado, uma vez que permitiu a realização de uma convenção adaptada completamente para o formato digital, não sendo apenas uma transmissão televisionada de um evento primeiramente organizado para delegados. Antes mais exclusivo para membros do partido e doadores, o formato virtual permitiu a quebra dessa barreira. Além disso, funcionou como um evento político responsável perante um cenário de pandemia, respeitando diretrizes sanitárias e servindo como um contraponto aos comícios realizados por Trump desde o início da atual crise de saúde. Em termos práticos, o evento acabou por ter uma queda na audiência televisionada, se comparado ao ano passado, e um crescimento considerável na audiência virtual, totalizando 28 milhões somente na primeira noite de transmissão.

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O seguinte aspecto, mais claramente explorado ao longo dos quatro dias, foi um reforço mais assertivo da insustentabilidade da administração de Donald Trump, pontuando especialmente a repressão governamental frente a movimentos sociais que eclodiram nos últimos meses e a falta de importância dada a medidas de contenção da COVID-19. A presença de democratas ativos e de figuras históricas de alta relevância, como Bill Clinton e Michelle e Barack Obama, serviu como o reforço de uma união partidária mais orgânica, tecendo fortes críticas aos quase quatro anos da administração Trump. O discurso de Obama, especialmente, não apenas representou uma das críticas mais duras do evento, mas uma das mais severas já realizadas por um ex-presidente sobre um presidente em exercício. Simultaneamente, os democratas buscaram se apresentar como um partido mais propositivo e preparado em meio às críticas ao governo atual.

Kamala Harris

Por si só sua nomeação já se apresenta como um marco histórico no que diz respeito às dinâmicas raciais nos Estados Unidos. Ao resgatar seu histórico como promotora, Harris fez da histórica injustiça racial no país o principal ponto focal de seu discurso, reconhecendo e pontuando com clareza a importância da questão racial em sua nomeação. Não faltaram críticas a Donald Trump, acusando o atual presidente de fazer uso político de tragédias nacionais. Historicamente uma figura marginalizada na campanha de Hillay em 2016, a atual candidata à vice-presidência demonstrou corresponder à parte da ponte entre as diferentes gerações de democratas, sobre a qual Joe Biden havia feito menção semanas atrás.

O discurso final de Biden

Provavelmente o momento de maior destaque desses quatro dias de convenção foi o discurso de aceitação da nomeação por parte de Joe Biden no último dia do DNC. Se antes a estratégia de esconder Biden ao longo da campanha era a mais usual e confortável, após seu último discurso, os democratas estão em um caminho sem volta. Biden demonstrou ser o oposto do que as caricaturas republicanas o desenhavam. Mais assertivo, claro e preparado, o discurso de Biden se assemelhou mais com um discurso de um presidente já eleito no Salão Oval, buscando mais liderar do que se apresentar como um candidato democrata. Diferenciou-se constantemente de Trump, evidenciando as habilidades e qualificações que lhe faltaram nos últimos quatro anos, e citou a fala infame do republicano ao se referir a manifestantes supremacistas brancos nos protesto de Charlottesville, em 2017.

Em meio a uma crise global de saúde, Joe Biden consegue deixar a convenção com sua imagem política, de certa forma, revigorada. Certos vícios e inconsistências em sua trajetória política ainda serão resgatados ao longo da corrida eleitoral e dos debates presidenciais. Dada oficialmente a largada eleitoral, cabe observar se a força política de Biden consolidada nos últimos dias não se dissipará frente à máquina de campanha de Donald Trump.


* Revisão: Tatiana Teixeira

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) ou do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP)”