O movimento das sardinhas

Em 14 de novembro de 2019, um novo movimento político surgiu na Itália.

Na cidade de Bolonha, marcada pela numerosa comunidade estudantil e por ser capital de uma região historicamente governada pela esquerda e centro-esquerda, desde a queda do regime fascista de Benito Mussolini, Matteo Salvini – líder da Lega, partido de extrema-direita – propôs juntar 6 mil pessoas em seu comício eleitoral. Em resposta, quatro jovens (um engenheiro, um guia turístico, um ambientalista e uma fisioterapeuta) convocaram, via Facebook, uma mobilização na praça central. Como esperado, mais de 6 mil pessoas encheram o local, espremidas como sardinhas. A metáfora vem também da ideia de pequenos peixes que, individualmente, são vulneráveis, porém, quando juntos em um cardume, tornam-se uma massa poderosa.

Inicialmente aparentando ser um ato isolado, o movimento ativista ganhou força na Emília-Romanha, durante as campanhas para as eleições regionais celebradas em 26 de janeiro, e no país como um todo. Nos últimos meses, as manifestações ocorreram tanto em diversas cidades ao longo da península, como Roma, Florença, Turim e Bari.

Sem uma liderança dos quadros políticos tradicionais, os organizadores propuseram que as pessoas reocupassem as ruas “sem teatrinho”, como uma demonstração espontânea do espírito popular, que fosse pacífica e apartidária. Esquivando-se de culpar partidos de direita ou de esquerda, o movimento apontou os indivíduos que não foram às ruas para deter o avanço leghista e do conservadorismo. Embora as sardinhas possam representar sinais de esperança para a unidade dos indivíduos, não está claro qual é o foco da insatisfação nem se existe alguma estratégia em longo prazo de tal ativismo. Tampouco se define uma agenda propositiva para a política, isto é, afastando o discurso do ódio, o que o substituiria?

As manifestações tendem a não ter bandeiras de partido, com a intenção de congregar o maior número de pessoas possível em torno da ideia comum e geral de solidariedade, contra o ódio e a segregação. Além disso, são vagamente inspiradas nas lutas antifascistas de meados do século XX, relembrando a redemocratização do país, ao entoarem a canção Bella Ciao e ao defenderem a libertação da região em relação a grupos políticos. Este último aspecto integra também o discurso da direita, que promete liberar a Itália do “domínio” da esquerda.

Existente há cerca de 30 anos, a Lega tem seus bastiões no norte rico do país, mais especificamente na Lombardia e no Vêneto. Inicialmente com uma proposta localista, o partido assumiu projeção nacional (inclusive utilizando o nome Lega, ao invés de Lega Nord, para conquistar o eleitorado do sul), levando adiante um discurso nacionalista, conservador e anti-imigração. Após crises econômicas e políticas, o contexto é marcado pela ascensão do populismo direitista, pelo protecionismo econômico e pelo euroceticismo (evidenciado pelo Brexit), condições que favoreceram a agenda eleitoral soberanista de Salvini. Este se apresentou como figura central, na mídia, em temas de segurança, de fronteiras e de imigração, defendendo controle mais rígido nos fluxos da Itália com o mundo.

As eleições regionais italianas e o futuro das sardinhas

Nas eleições regionais, estímulo inicial para o movimento das sardinhas, a Calábria (Sul) elegeu sua primeira presidenta mulher, Jole Santelli, membro do partido Forza Italia (FI), liderado pelo tradicional político Silvio Berlusconi. Na Emília-Romanha (Nordeste), foi reeleito Stefano Bonaccini (no cargo desde 2014), do Partito Democratico (PD), tradicional partido de centro-esquerda.

O Instituto Cattaneo analisou que a Lega teve mais força nos municípios menores e periféricos, ao passo que o PD teve resultados mais favoráveis conforme a maior população da cidade, como as que compõe a histórica Via Emília, de Parma até Rimini. Ademais, comparando as eleições emiliano-romanholas de 2020 e 2014, nota-se que, apesar da vitória da coalizão de centro-esquerda, a lista da direita subiu de 29,7% para 45,4% dos votos. Focando especificamente na Lega, foi de 19,4% para 31,9%. Assim, no cômputo geral, a coalizão direitista ganhou uma das regiões e perdeu outra, mas mantendo-se como relevante força política na Assembleia Legislativa em Bolonha. Nesse sentido, a Lega, um partido que se propunha como outsider, passou a integrar o mainstream da política nacional, assim como o Movimento 5 Stelle (M5S), disputando cargos com o FD, FI e Fratelli d’Italia.

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Outro dado importante dessas eleições foi a maior participação eleitoral dos cidadãos, um elemento que vai de encontro com as propostas das sardinhas de mudança política. Em 2014, foram às urnas 1,3 milhão de eleitores. Em 2020, 2,3 milhões, representando 67,7% do eleitorado da região. O próprio movimento e analistas políticos identificaram que o fenômeno das sardinhas foi um dos fatores que conduziu à maior participação, dando uma vitória às sardinhas e uma derrota a Salvini, que se envolveu pessoalmente nestas eleições, dando uma dimensão nacional à região.

Convém lembrar que, em 2019, houve uma crise no Parlamento italiano. Salvini, então vice-primeiro-ministro e ministro do Interior, lançou um voto de desconfiança ao governo, esperando que novas eleições fossem convocadas e ele pudesse ser conduzido ao cargo de primeiro-ministro. Entretanto, uma nova coalizão entre o M5S e o PD levou à continuidade de Giuseppe Conte como primeiro-ministro, dando um tom menos nacionalista ao governo. Sendo assim, como resultado, o presidente Sergio Mattarella não chamou eleições antecipadamente e Salvini permaneceu como líder partidário e senador, mas não como ministro.

Esse relativo enfraquecimento da Lega no final de 2019 e começo de 2020 contrasta com o sucesso eleitoral que teve no primeiro semestre de 2019. Nas eleições para o Parlamento Europeu, conquistou 34% dos votos, tornando-se a maior bancada italiana no órgão legislativo supranacional. Em âmbito local, ocorreram eleições para alguns municípios. A Lega obteve vitórias em cidades importantes, como Cagliari, Ferrara e Perugia, mas também em postos simbólicos, como Predappio, cidade onde nasceu Benito Mussolini e que foi historicamente governada por administrações de esquerda no pós-2ª Guerra Mundial. Por outro lado, a Lega não venceu em outras cidades, como Bérgamo, Lecce, Livorno e Módena.

Na primavera, ainda ocorrerão eleições regionais em Campânia, Ligúria, Marcas, Apúlia, Toscânia e Vêneto, oferecendo oportunidade para a retomada das sardinhas mesmo após o resultado na Emília-Romanha. Assim, os próximos meses podem trazer novidades para a política no sul da Europa.

Ainda que não estejam claros os próximos passos das sardinhas, a tendência anunciada é que não parem, o que pode gerar debates sobre sua possível institucionalização. Por um lado, isso acarretaria o risco de tornarem-se o que nasceram para criticar: mais um partido que se propõe a mudanças, mas esbarra nos limites do sistema político contemporâneo. Por outro, constituir um novo movimento político daria a oportunidade de levar sua agenda para ações em longo prazo, não apenas respondendo a eventos pontuais. No entanto, institucionalizar-se demandaria não apenas ser uma reação à ascensão da extrema-direita, mas também liderança e uma pauta ideológica definida a respeito do que são favor e do que são contra.