Se algo pode ser destacado para qualificar o discurso feito por Michel Temer na abertura da Assembleia Geral da ONU, no dia 20 de setembro, este algo gira em torno da ideia de sobriedade e da busca de continuidade.

Foi um bom discurso, especialmente se se considerarem as circunstâncias em que foi feito: um presidente ainda em busca de legitimidade, dirigente de um governo mal configurado, sem um plano claro de ação, tendo de lidar com a desconfiança, com uma crise política que se repõe e com uma oposição que não lhe dá tréguas.

O discurso teve mérito porque, para o público interno, soube contornar aquele que foi visto como risco maior: o registro do “golpe” ou da difícil transição em que se encontra o país. Temer falou do impeachment de Dilma com discrição e serenidade, em tom equilibrado: “O Brasil acaba de atravessar processo longo e complexo, regrado e conduzido pelo Congresso Nacional e pela Suprema Corte brasileira, que culminou em um impedimento. Tudo transcorreu dentro do mais absoluto respeito à ordem constitucional. Não há democracia sem Estado de direito – sem normas que se apliquem a todos, inclusive aos mais poderosos. É o que o Brasil mostra ao mundo. E o faz em meio a um processo de depuração de seu sistema político”.

O momento atual seria de reconstrução e de unificação política, e nele não se poderão fazer concessões às tradições e aos valores nacionais, tanto para dentro quanto para fora do país. “Nossa tarefa, agora, é retomar o crescimento econômico e restituir aos trabalhadores brasileiros milhões de empregos perdidos. Temos clareza sobre o caminho a seguir: o caminho da responsabilidade fiscal e da responsabilidade social. A confiança já começa a restabelecer-se, e um horizonte mais próspero já começa a desenhar-se. Nosso projeto de desenvolvimento passa, principalmente, por parcerias em investimentos, em comércio, em ciência e tecnologia. Nossas relações com países de todos os continentes serão, aqui, decisivas”.

O discurso não se estendeu na questão do impedimento, que pouco sentido faria na Assembleia Geral. Seu foco esteve voltado para o estado do mundo e o lugar que o Brasil deve ocupar nele. Ofereceu assim uma boa oportunidade para que se conheçam melhor algumas das ideias que o novo presidente e seu governo seguirão em política externa.

Uma diplomacia para transformar o mundo

Neste terreno, houve pouca novidade e bastante reiteração. Temer pareceu seguir a prudência e a moderação. O Brasil foi mais uma vez apresentado como um país que acredita no poder do diálogo, fator essencial em um mundo “que apresenta marcas de incerteza e instabilidade” e em um sistema internacional que “experimenta um déficit de ordem”, reflexo do fato de que “a realidade andou mais depressa do que nossa capacidade coletiva de lidar com ela”. O quadro é tenso: “De conflagrações regionais ao fundamentalismo violento, confrontamos ameaças que, velhas e novas, não conseguimos conter”. Com um desdobramento preocupante: “A incapacidade do sistema de reagir aos conflitos agrava os ciclos de destruição. A vulnerabilidade social de muitos, em muitos países, é explorada pelo discurso do medo e do entrincheiramento”.

A ênfase no diálogo, associada à reiteração dos valores e aspirações que orientam a atuação internacional do Estado brasileiro — paz, desenvolvimento sustentável e respeito aos direitos humanos – requer uma idêntica ênfase na capacidade estratégica que tem a diplomacia de transformar o mundo: “uma diplomacia equilibrada, mas firme. Sóbria, mas determinada. Uma diplomacia com pés no chão, mas com sede de mudança”. Em um sistema internacional no qual a diplomacia venha a ter tanta relevância, o direito deve prevalecer sobre a força, para o que as regras e as instituições multilaterais devem refletir “a pluralidade do concerto das nações”.

Foi como entrou em cena outra cláusula pétrea da política externa brasileira das últimas décadas. “Queremos uma ONU de resultados, capaz de enfrentar os grandes desafios do nosso tempo”, disse Temer. As Nações Unidas não podem “resumir-se a um posto de observação e condenação dos flagelos mundiais. Devem afirmar-se como fonte de soluções efetivas. Os semeadores de conflitos reinventaram-se. As instituições multilaterais, não”. Para então lembrar: “O Brasil vem alertando, há décadas, que é fundamental tornar mais representativas as estruturas de governança global, muitas delas envelhecidas e desconectadas da realidade. Há que reformar o Conselho de Segurança da ONU. Continuaremos a colaborar para a superação do impasse em torno desse tema”.

O discurso presidencial chamou atenção para os inúmeros e complexos desafios que ultrapassam as fronteiras nacionais, do tráfico de drogas e armas ao crime organizado, da guerra na Síria, que “continua a gerar sofrimento inaceitável e onde as maiores vítimas são mulheres e crianças”, à ‘’ausência de uma perspectiva de paz entre Israel e Palestina”. Reiterou-se que o Brasil “apoia a solução de dois Estados, em convivência pacífica dentro de fronteiras mutuamente acordadas e internacionalmente reconhecidas”. Tudo, em suma, exigiria a busca de cooperação, de ajuda humanitária e de soluções políticas.

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Avanços e vitórias da diplomacia estariam presentes na condução do dossiê nuclear iraniano, nos acordos entre o governo colombiano e as Farc, no restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos.  Animosidades existem para ser superadas, destacou o presidente. “Esperamos que essa aproximação traga, para toda a região, novos avanços também no plano econômico-comercial. Desejamos que o reatamento seja seguido do fim do embargo econômico que pesa sobre Cuba”.

Desenvolvimento, meio ambiente e integração

Temer usou parte importante do discurso para se referir ao sul do mundo, à América Latina e à África. Ao mencionar o 25º aniversário da Agência de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares, organização binacional dedicada à aplicação de salvaguardas nucleares, recordou que “a promoção da confiança entre brasileiros e argentinos na área nuclear está na origem de nossa experiência de integração. Está na base de projetos como o Mercosul. A integração latino-americana é, para o Brasil, princípio constitucional e prioridade permanente de política externa”. Do mesmo modo que para a América Latina e para o esforço de integração, “o Brasil olha para a África com amizade e respeito, com a determinação de empreender projetos que nos aproximem ainda mais”.

Trata-se, em resumo, do imperativo do desenvolvimento e da multiplicação de “sociedades desenvolvidas”, nas quais “todos têm direito a serviços públicos de qualidade – educação, saúde, transportes, segurança”, onde se garante a igualdade de oportunidades, o bem-estar, o acesso ao trabalho decente e a dignidade da pessoa humana. Por isso, o Brasil defende a Agenda 2030, “maior empreitada das Nações Unidas em prol do desenvolvimento”, que precisa sair do papel.

O crescimento, porém, precisa ser buscado “de forma socialmente equilibrada com respeito ao meio ambiente”. A própria biodiversidade brasileira exige que o Brasil atue como uma potência ambiental que tem compromisso inequívoco com o meio ambiente. O crescimento depende, ainda, do comércio. Fato que, para Temer, implica a contenção do “reflexo protecionista” que cresce em cenários de crise econômica. “O protecionismo é uma perversa barreira ao desenvolvimento. Subtrai postos de trabalho e faz de homens, mulheres e famílias de todo o mundo – Brasil inclusive – vítimas do desemprego e da desesperança. O sistema multilateral de comércio é parte da luta contra esse mal”. Assim também na área agrícola, onde, entre outras coisas, mostra-se “urgente impedir que medidas sanitárias e fitossanitárias continuem a ser utilizadas para fins protecionistas”.

De olho nos investidores internacionais, o presidente insistiu em dizer que “a confiança já começa a restabelecer-se e um horizonte mais próspero já começa a desenhar-se”. Foi um exagero evidente, quase uma provocação, que serviu para revelar a ansiedade que o governo vem demonstrando em proclamar a volta da “confiança”, esta palavrinha mágica que tem sido usada como cataplasma universal nessa época de incerteza, risco e desconfiança generalizada.

Temer concluiu fazendo uma defesa enfática da plena fruição dos direitos humanos, que “permanece uma aspiração inalcançada no mundo”. Para ele, “cada ser humano tem o direito de viver livremente, conforme suas crenças e convicções. Essa liberdade fundamental, contudo, é desrespeitada todos os dias. Perseguições, prisões políticas e outras arbitrariedades ainda são recorrentes em muitos quadrantes. Nosso olhar deve voltar-se, também, para as minorias e outros segmentos mais vulneráveis de nossas sociedades. É o que temos feito no Brasil, com programas de transferência de renda e de acesso à habitação e à educação”, bem como com “a defesa da igualdade de gênero, prevista em nossa Constituição”. O Brasil, afinal, destacou, “é obra de imigrantes, homens e mulheres de todos os continentes. Repudiamos todas as formas de racismo, xenofobia e outras manifestações de intolerância”.

Ainda que deva ser analisado em maior profundidade e confrontado com os atos concretos e as políticas que vierem a ser adotadas por seu governo, o discurso presidencial na ONU pode ser visto como uma tentativa de pacificar o front interno e normalizar a vida política nacional. Por seu teor e por suas frases de efeito, parece ter sido calculado cuidadosamente para apresentar ao mundo um Estado que continua fiel a seus compromissos e a suas teses em matéria de política internacional. Será certamente lido e processado de diferentes maneiras dentro do país, como tem sido habitual. Tudo somado, porém, o fato de não ter trazido novidades eloquentes é o que sustenta seu maior mérito.